29 de ago. de 2009

Fábula

Acho que uma das grandes lacunas da literatura brasileira é a nossa falta de "fabulistas", da escrita metafórica, lúdica e lúcida - da qual o maior mestre é, acredito, Calvino (Borges sendo sua contraparte). Abaixo, fragmento de As Cidades Invisíveis, essa fábula das várias formas que a realidade assume e da nossa incapacidade de restringí-la a uma regra rígida ou diminuí-la a ponto de entendê-la completamente:


*

.....Aos pés do trono do Grande Khan estendia-se um pavimento de maiólica. Marco Polo, informante mudo, espalhava o mostruário de mercadorias trazidas de suas viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, um coco, um leque. Dispondo os objetos numa certa ordem sobre os azulejos brancos e pretos e, a partir daí, deslocando-os com movimentos estudados, o embaixador tentava representar aos olhos do monarca as vicissitudes de sua viagem, o estado do império, as prerrogativas de remotas capitais de província.
.....Kublai era um atento jogador de xadrez; seguindo os gestos de Marco, observava que certas peças implicavam ou excluíam a proximidade de outras peças e deslocavam-se de acordo com certas linhas. Transcurando a variedade de formas, ele definia a disposição de um objeto em relação ao outro sobre o pavimento de maiólica. Pensou: “Se cada cidade é como uma partida de xadrez, o dia em que eu conhecer as suas regras finalmente possuirei o meu império, apesar de que jamais conseguirei conhecer todas as cidades que este contém”.
.....No fundo, era inútil que para falar de suas cidades Marco utilizasse tantas ninharias: bastava um tabuleiro de xadrez com peças precisamente classificáveis. Para cada peça podia-se atribuir alternadamente um significado apropriado: um cavalo podia representar tanto um cavalo real quanto um cortejo de carroças, um exército em marcha, um monumento eqüestre; e uma rainha podia ser uma dama debruçada no balcão, uma fonte, uma igreja com a cúpula cuspidata, um pé de marmelo.
.....Ao retornar de sua última missão, Marco Polo encontrou o Khan a sua espera, sentado diante de um tabuleiro de xadrez. Com um gesto, convidou-o a sentar à sua frente e descrever-lhe as cidades que visitara apenas com o auxílio do xadrez. O veneziano não se desesperou. O xadrez do Grande Khan era composto de grandes peças de marfim polido: dispondo sobre o tabuleiro torres ameaçadoras e cavalos sombrios, condensando uma grande quantidade de peças, traçando avenidas retas ou oblíquas como os movimentos da rainha, Marco recriava as perspectivas e os espaços de cidades brancas-e-pretas em noites de lua.
.....Ao contemplar essas paisagens essenciais, Kublai refletia sobre a ordem invisível que governava a cidade, sobre as regras a que respondiam o seu surgir e formar-se e prosperar e adaptar-se às estações e definhar e cair em decadência. Às vezes, parecia-lhe estar prestes a descobrir um sistema coerente e harmônico que estava por trás das infinitas deformidades e desarmonias, mas nenhum modelo resistia à comparação com o jogo de xadrez. Pode ser que, em vez de insistir em evocar com o magro auxílio de peças de marfim visões de qualquer modo destinadas ao esquecimento, bastasse jogar uma partida segundo as regras e contemplar cada um dos estados sucessivos do tabuleiro como uma das inúmeras formas em que o sistema de formas se organiza e se destrói.
[...]
.....O Grande Khan tentava identificar-se com o jogo: mas agora era o motivo do jogo que lhe escapava. O objetivo de cada partida é um ganho ou uma perda: mas do quê? Qual era a verdadeira aposta? No xeque-mate, sob os pés do rei derrubado pelas mãos do vencedor, resta um quadrado preto ou branco. Com o propósito de desmembrar as suas conquistas para reduzi-las à essência, Kublai atingira o extremo da operação: a conquista definitiva, diante da qual os multiformes tesouros do império não passavam de invólucros ilusórios, reduzia-se a uma tessela de madeira polida: o nada...

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