17 de dez. de 2009

Notas mau humoradas

Com todos os líderes em Copenhagen, lembrei de uma frase do Millôr sobre a abertura lenta e gradual que os militares queriam fazer - dizia que, se Hércules tivesse seguido esse tipo de conselho, teria limpado as estrebarias de Áugias com um baldinho e um regador e aquilo estaria cheio de bosta até hoje... para quem não sabe ou se lembra (infelizmente quase ninguém lê essas coisas mais), limpar as estrebarias de Áugias, que se estendiam por quilômetros, foi um dos doze trabalhos de Hércules, que ele resolveu de maneira bastante eficiente - desviou um rio e limpou as estrebarias. Do mapa, inclusive: não sobraram nem bosta, nem estrebarias e nem cavalos. Mas do jeito que estão andando as coisas, também não haverá preocupações futuras com o meio ambiente - não haverá um, pra se preocupar.

*

Em um livro de marketing, descubro que a pressão para abrir um saco de batatas fritas é cuidadosamente estudada, para que dê ao consumidor o nível de dificuldade adequada - nem tão fácil que não pareça uma conquista (!), nem tão difícil que cause frustração. O animal treinado- desculpe, consumidor -, depois da tarefa, deve se sentir recompensado, como aqueles macacos que ganham bananas montando cubos. Outra forma sutil é enfiar folhas soltas em revistas - quando o macaco, digo, consumidor, abre a revista, cai a folhinha e ele é obrigado a pegá-la, sendo obrigado assim a ver o que é, aumentando as chances de que continue a leitura. A realidade é que a propaganda solta custa mais caro por isso - experimentem abrir uma revista e deixar os papéis soltos caídos no chão... não dá, não conseguimos, somos responsáveis por causar a sujeira, jogar o lixo no chão, então temos que pegá-los, e ao fazer isso, quantas vezes não olhamos pra ver se faz parte de alguma reportagem ou se é algo interessante? Uns 20 anos atrás, uma fábrica de Detroit fez um experimento com cores - vermelho causa angústia e desconforto, azul traz tranqüilidade, etc. Colocaram então em prática a "brilhante estratégia" de fazer com que os monitores e luzes que cercavam cada trabalhador mudassem de cor de acordo com a produtividade. Caso o trabalhador apresentasse atraso, a tela ia ficando vermelha, fazendo com que ele se esforçasse pra voltar ao azul mais confortável... Todas as estratégias de Recursos Humanos e Marketing de hoje são aprimoramentos do princípio básico usado desde os feitores das pirâmides: utilizar o máximo do potencial de cada animal cativo submetido ao seu jugo. A única nota divergente a essas estratégias que já vi foi nas barrinhas de chocolate de certa fábrica brasileira - ao colocarem uma seta e um "Abra aqui", a única motivação daqueles sádicos deve ter sido o sarcasmo.

11 de dez. de 2009

Baixinhos

Qual o problema com os baixinhos? Porque tão arrogantes, exibidos, insuportáveis, tiradores de onda? Comecei a desenvolver uma nova teoria, já que a anterior - a de que baixinhos gostam de carrões para, em última análise, mostrar para as parceiras que conseguem alcançar o volante - só explicam os baixinhos bem sucedidos.
A nova teoria é de que eles sabem, no íntimo, que devem sua existência a uma falha da teoria darwiniana. Explico: a teoria da evolução não contava com a tecnologia. Sem a tecnologia, os baixinhos estariam relegados a comida de dinossauro, com as perninhas incapazes de alcançar o resto da tribo, satisfeita em ter uma isca que além de ficar pra trás, gritava, atraindo os carnívoros. Mas agora eles podem manusear armas, comandar exércitos, usar computadores (com ajuda de cadeiras mais altas, mas podem), até conquistar países (vide Napoleão) ou mesmo comer a Carla Bruni.
Há 10, 50 mil anos, estariam relegados ao olhar de pena dos pais  ("mais um pra servir de isca"),  ou então às esperanças nunca abandonadas das mães ("Olha a voz! Olha a voz! Com  uma voz esganiçada dessas a gente põe ele num alto qualquer e ele consegue gritar "olha o alce" antes de qualquer um! Fala que não é útil", diante do olhar de descrença do resto da tribo.)
Assim, a cada conquista, carrão, exibição insuportável de nariz empinado, arrogância, etc., dos baixinhos de hoje, repousa o sentimento atávico de que têm que  provar alguma coisa, de que estão aqui  por um acaso e uma concessão da evolução social, um medo de que um dia os demais percebam que eles pegaram carona  numa janela de oportunidade evolucionária e não pertencem realmente ao grupo. Tudo o mais é diversionismo pra gente não ficar pensando o que eles já sabem no íntimo.
E aposto que muitos deles acordam suados de noite gritando "olha o antílope! olha o antílope!".

7 de dez. de 2009

Funções metafísicas do blog

Um buzinada é uma forma utilizada pelos motoristas para petrificar o pedestre na frente do carro de modo a atropelá-lo mais facilmente. Ontem, voltando do aeroporto, percebi claramente a tal função: pedestre começa a atravessar, sujeito buzina, o pedestre pára imediatamente e fica olhando com aqueles olhos de gazela esperando o ataque do leão, petrificado na frente do carro. Aliás, proponho substituir a buzina, a com função de alerta mesmo, por um botão mais distante no painel, para ser usado nas situações usuais de aviso, alerta, etc. No volante, a gente podia ter uma daquelas almofadas para criança, que você poderia socar, apertar, torcer, e ela faria barulho, guincharia, etc. Pelo que vejo, em 99% das vezes que os motoristas usam a buzina, o uso não tem absolutamente nenhuma relação com o trânsito, é só uma forma de expressar frustração, raiva, fúria, nervosismo, descontando a impotência diante da lerdeza do trânsito, do atraso iminente, etc. Botando uma "buzina interna" ele descontaria sua raiva sem incomodar o resto do mundo.

Esse blog foi, durante um tempo, uma forma de inserção de pílulas de observação da realidade - como o Muro das Lamentações de Jerusalém ter sido o primeiro SAC - Serviço de Atendimento ao Consumidor. Depois evoluiu para vídeos e achados na net, além de publicações extemporâneas de textos. Também teve a função de blog mesmo, de formas mais pessoais de contações de vida. Foi tomando um formato de publicação de textos feitos para colunas ou publicações em papel, reproduzidas em meio digital (com o aparte óbvio de que foram feitos para publicação em papel, mas não chegaram a sê-lo). E aí foi ficando mais sério, mais "difícil", também. E complicado de escrever, sempre com vontade de que fosse algo sério, algo bom, algo com "valor literário". Hora de voltar à parte gostosa de ser simplesmente catártico, às vezes bobo, às vezes não, e depois separo o joio do trigo - ou o jocoso do trigo.

28 de nov. de 2009

Schifaizfavoire

Esse é o nome do dicionário de português de Portugal do Mario Prata... divertido. Algumas passagens:

Apelido
Um dia o Zefirelli, o diretor de cinema, estava em Portugal e foi visitar uma amiga numa elegante quinta. Ao ser recebido pelo mordomo, se anunciou: Zefirelli. O mordomo procurou a patroa e disse o apelido dele: está aí o senhor José Firelli. Ela respondeu: não é senhor José Firelli, é senhor Zefirelli. E o mordomo retrucou: isso para a senhora que é íntima. Para mim, é senhor José Firelli.

Banheiro
Jamais, em momento algum, diga que quer ir a um banheiro. Dizer isso significa que você quer ir ao encontro do salva-vidas, aquele que fica na praia de camiseta branca com uma cruz vermelha no peito. E, se for mulher, a salva-vidas atende pelo sugestivo nome de banheira.

Avariado
Esta é uma palavra muito importante para se conhecer. Se você telefonar para a oficina e disser que o televisor está quebrado, por exemplo, eles vão achar que o aparelho caiu no chão e se partiu. Quebrar tem o sentido de partir ao meio. Se você disser que a geladeira quebrou, eles passarão dias imaginando como é que pôde acontecer uma calamidade desta. Como é que uma geladeira, daquele tamanho, pode se partir ao meio? Nada quebra, tudo fica avariado.

18 de nov. de 2009

Heróis

"Para Homero e para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em contrapartida, a maior das tragédias humanas. Assentava nisso toda a sua ordem social: a ânsia de honra neles era simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e os príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta. Ninguém receia, na Antigüidade, reclamar a honra devida a um serviço prestado; a exigência de pagamento é para eles aspecto secundário e de modo nenhum decisivo. O elegio e a reprovação são a fonte de honra e desonra. É difícil para o homem moderno imaginar a absoluta exposição da consciência, entre os Gregos. Para eles não existe, efetivamente, nenhum conceito como a nossa consciência pessoal. A ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação (...) aparecem aos Gregos como  a aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o valor." in Paideia, de Werner Jaeger.


......O herói se torna herói pela sua ânsia de reconhecimento e de honra, pois só assim ocupa posição destacada dentre os homens... é interessante o paralelo deste conceito de herói com o conceito grego de nomos. As coisas podem ser contextualizadas de três formas: as que brotam da natureza (phuó, de onde se origina a palavra física, physis); as coisas que se transformam ou são criadas pelas artes e habilidades da intervenção humana (techné, de onde vem técnica, tecnologia); e as coisas que adquirem seu sentido por convenção ou atribuição do grupo ou sociedade, o nomos. Acho que não é sem razão que a reputação seja construída assim, e a parte de "ilustrar o nome", tornar-se ilustre e conhecido, relacione-se com nomos, com coisa que existe por significação e atribuição coletiva.

......Mas o conceito evolui para a aquisição de consciência pessoal, e o existencialismo propugna a existência completa em si mesmo - o viver completamente, o além do homem, a superação em si e para si. Isso envolve, claro, contrariar e contradizer todos à sua volta por uma crença absolutamente pessoal - e aqui vou ceder ao apelo sentimental de meus marcos miliários: estava no meio desses pensamentos quando veio à cabeça o exemplo paradigmático de tal "herói para si" - o Dom, Nosso Senhor Quixote. Legendei o trecho com a música onde ele expressa o significado de sua "missão", que coloco abaixo.



PS: Um exemplo muito didático da divisão de classificação pré-socrática de "coisas", dada pelo prof. Robert C. Bartlett, é o de uma árvore (cresce - phuó - por si só, sem intervenção humana ), que pela ação humana se transforma em papel (techné), e que pela convenção adquire valor quando se torna uma nota de um real, por exemplo (nomos).

16 de nov. de 2009

Adriano

Vou encher um pouco o saco de todos com a próxima seqüência de posts: gregos! Estou fazendo dois cursos atualmente, um chamado Mestres do Pensamento Grego e outro chamado No Excuses: Existentialism and the Meaning of Life (Sem desculpas: Existencialismo e o sentido da Vida). Os dois são interessantíssimos, e resolvi fazê-los paralelamente, de modo que o início do pensamento humano, que se debruça sobre si próprio e dá origem ao que hoje é a civilização ocidental, fique lado a lado com a experiência de repensar essa mesma civilização e seus caminhos e descaminhos, o que nos tornamos, o que nos torna incompletos, o que nos torna mais ou menos humanos, trazido até de modo bastante amargo pelos existencialistas... tem sido uma experiência reveladora.
Mas esse post era só para incluir uns trechos do livro Memórias de Adriano, que acho veio a calhar: Adriano, imperador romano, era chamado de "o estudante grego", pelo seu amor pela filosofia e civilização gregas. Com ele, dá-se um fenômeno de renascimento do império, transformando o seu reinado e os dois seguintes, com sucessores por ele escolhidos, no que o Gibbon descreve como "o único período da história da humanidade em que a felicidade de um grande povo era o único objetivo do governo" - o que não é pouca coisa. Mas além das extraordinárias realizações desse imperador que era ao mesmo tempo artista, arquiteto, poeta, engenheiro, músico, místico e aventureiro, ainda temos a sua escolha de seus dois sucessores: Antonino Pio, exemplo de dedicação e retidão, e Marco Aurélio, o "rei filósofo" platônico, que tem méritos filosóficos próprios. Desde o antecessor de Adriano, Trajano, o princípio de escolha dos sucessores foi não a hereditariedade mas o mérito: o melhor homem é o próximo a governar o império. Justamente o filosófico Marco deixa essa máxima de lado, escolhe o filho como sucessor e mergulha o império num banho de sangue devido à incompetência e sede de poder do indigno sucessor. Mas Adriano marca também uma tentativa de repensar a civilização e seus caminhos, de refrear alguns ímpetos e desenvolver outros, de contruir novas idéias, de pensar o humano voltando aos gregos, adaptando-os - algo que só volta a ser tentado, de forma laica, pelo menos, uns 15 séculos depois dele.
Alguns trechos do livro:

"Antes de mim, já alguns homens haviam percorrido a terra: Pitágoras, Platão, uma dúzia de sábios e bom número de aventureiros. Pela primeira vez, o viajante era, ao mesmo tempo, o senhor com plena liberdade de ver, reformar e criar. Era a minha oportunidade, e compreendi que talvez tivessem de decorrer séculos antes que se reproduzisse esse feliz acordo entre um cargo, um temperamento e um mundo. Foi então que me apercebi da vantagem de ser um homem novo e um homem só, muito pouco casado, sem filhos, praticamente sem ancestrais, Ulisses sem outra Ítaca além da interior. Devo fazer aqui uma confissão que nunca fiz a ninguém: jamais experimentei o sentimento de pertencer completamente a qualquer lugar, nem mesmo à minha Atenas bem-amada, sequer a Roma. Estrangeiro em toda parte, mesmo assim não me sentia particularmente isolado em lugar algum."

"Plotinópolis, Andrinopla, Antinoé, Adrianótera... Multipliquei o máximo possível essas colméias de abelha humana. O bombeiro e o pedreiro, o engenheiro e o arquiteto presidem a esses nascimentos de cidades; a operação exige também certos dons de feiticeiro. Num mundo em que mais da metade é ocupada ainda pelas florestas, pelo deserto e pelas planícies incultas, constitui belo espetáculo contemplar uma rua pavimentada, um templo dedicado seja a que deus for, balneários e latrinas públicos, a loja onde o barbeiro discute com os clientes as notícias de Roma, a tenda do pasteleiro, do negociante de sandálias, talvez uma livraria, a tabuleta de um médico, um teatro onde se representa de tempos em tempos uma peça de Terêncio... Os exigentes lamentam a uniformidade das nossas cidades. Sofrem por encontrar em toda parte a mesma estátua do imperador e os mesmos aquedutos. Não têm razão: a beleza de Nímes difere da de Aries. Mas a própria uniformidade reencontrada em três continentes alegra o viajante como a de um marco miliário. As mais comuns das nossas cidades possuem ainda seu prestígio tranqüilizador da muda, da posta ou do abrigo. A cidade: a moldura, a construção humana, monótona se quiserem — mas como são monótonos os favos de cera carregados de mel, o lugar dos contatos e das trocas, o ponto onde os camponeses vêm vender seus produtos, retardando-se para admirar, boquiabertos, as pinturas de um pórtico... Minhas cidades nasciam de reencontros: a minha, com um recanto de terra, a dos meus planos de imperador, com os incidentes de minha vida de homem."

"Poucos meses depois da grande crise, tive a alegria de ver formar-se de novo às margens do Orontes a fila das caravanas. Os oásis repovoavam-se de comerciantes que comentavam as notícias ao clarão das fogueiras onde preparavam sua comida. Ao recarregarem cada manhã suas mercadorias destinadas aos países desconhecidos, levavam consigo certo número de pensamentos, de palavras e de costumes nossos, que pouco a pouco se apoderariam do globo terrestre mais facilmente do que legiões em marcha. A circulação do ouro e o trânsito das idéias, tão sutil como o ar vital nas artérias, recomeçavam no interior do grande corpo do mundo. O pulso da terra voltava a bater."

11 de nov. de 2009

1 milhão!

Meu canal do Youtube ultrapassou hoje 1 milhão de visitantes - com 371 assinantes. O canal começou como um lugar para colocar minha coleção de quinquilharias, desenvolveu-se para incluir séries como O Povo Brasileiro e, por fim, espaço para divulgação de programas, aulas e vídeos educativos em geral, especialmente em inglês, que tenho legendado e disponibilizado na rede.
Os vídeos estão sendo utilizados em vários outros canais e sites educativos, como o EJA - Educação de Jovens e Adultos, vários sites sobre filosofia, sites de universidades, sobre história, sobre cultura brasileira em geral, e, ultimamente, inclusive do governo português - recebi até agradecimento "personalizado" pelo trabalho de divulgação cultural...
Na verdade, é um prazer imenso fazer isso - essas coisas são pra se saber, dividir, contar, e não guardar em gavetas ou bibliotecas empoeiradas para usos de acadêmicos sisudos, sempre achei. Ao compartilhar isso, sinto o mesmo prazer que o contador de histórias da tribo, repassando o que viu, ouviu e aprendeu - e esperando, em retribuição, ver, ouvir e aprender dos outros, também. Coisas assim fazem a vida valer a pena.
Abaixo, os vídeos "campeões de audiência":

Brasil, Brasil - Samba to Bossa - Primeiro vídeo de uma série da BBC, em três partes, sobre música brasileira. Esse teve mais de 132 mil visitas até agora.


Joana Francesa - trecho do filme Joana Francesa, com a fantástica e única Jeanne Moreau e música do Chico, com pouco mais de 35 mil visitas:


O Povo Brasileiro - série baseada no livro homônimo do Darcy, esse é o primeiro vídeo - só esse, mais de 50 mil visitas.


Prospero's Books - Adaptação do Peter Greenaway da peça "A Tempestade", de Shakespeare, com John Gielguld, um dos melhores filmes que já vi, de uma plasticidade e beleza estonteantes, com pouco mais de 24 mil visitas.



E mais 156 vídeos até o momento, que vão desde aulas de filosofia até traduções de palestras do Prof. Donald Kagan, de Yale, documentários da BBC e aulas do Prof. Eugene Weber na WGBH, todas legendadas por mim, assim como filmes, documentários, entrevistas e muito mais... em  www.youtube.com/salmax.

4 de nov. de 2009

Antropologia

Antes de comentar a morte do Lévi-Strauss, transcrevo dois textos abaixo, como forma de repensar ou pensar a antropologia - um campo de estudo que está ao mesmo tempo próximo de mim pelo interesse e objetos de estudo e distante, a anos-luz, pelo meu conhecimento sobre a matéria, que só tangenciei, poucas vezes, e usualmente em trajetória inversa e conflitante. Ao ler os textos, entretanto, vou descobrindo que, se o estranhamento continua, as direções das trajetórias já não são opostas. O trecho inicial  de um artigo do Eduardo Viveiros de Castro, um dos antropólogos nacionais de maior renome, onde ele faz uma brincadeira com o significado restrito e restritivo que a etnologia adquiriu por aqui, ao mesmo tempo em que os próprios etnólogos se erguiam na torre de marfim da pureza semi-religiosa da ciência, e entrevista dele com o Lévi-Strauss, nos anos 90.


"Sou um etnólogo, isto é, aquela espécie de antropólogo social que se interessa por sociedades simples, de tradição cultural não-ocidental etc. Na academia brasileira, isto significa que sou um "especialista em índio". Tal acepção de "etnólogo" é arbitrária; estou seguindo uma tendência que existe no meio cientifico local (e consagrada nas classificações do CNPq); em outros países, a palavra tem outras conotações. Os antropólogos que estudam sociedades indígenas são hoje uma minoria dentro da disciplina no Brasil; eles, sobretudo os que estudam coisas como parentesco, ritual ou cosmologia, são vistos por seus colegas como praticando um oficio bizarro, um pouco antiquado, simbolicamente importante mas demasiado técnico e, no fundo, irrelevante. Em troca, é possível que nos concebamos como a aristocracia da disciplina, descendentes em linha direta dos heróis fundadores - como uma espécie de brâmanes da religião antropológica, escolhidos pelo ordálio do trabalho de campo junto a primitivos autênticos, perdidos no coração da selva. Estudamos sociedades que, se não são "complexas", são completas; aprendemos línguas e costumes exóticos; tratamos de assuntos como xamanismo, aliança matrilateral, metades exogâmicas, ritos funerários, canibalismo; administramos, em suma, aqueles sacra apresentados aos noviços antes que enveredem, majoritariamente, pelas sendas profanas da antropologia em sentido lato. Para nós, as antropologias urbanas e rurais são etnologizações do alheio, obra de aventureiros que invadiram com nossa bandeira os domínios dos burgos vizinhos. Nós etnólogos continuamos morando na cidade velha da antropologia."

Entrevista (trecho):


Viveiros de Castro
Em geral, o senhor crê que a etnologia faz uma grande volta ao passado?

Lévi -Strauss
Não, eu me dirigia aos Temps Modernes, em particular. Creio que há coisas que não ousamos mais dizer, e que é preciso dizer, ou em breve não se compreenderá mais coisa alguma. É preciso afinal dizer que a antropologia é uma disciplina que nasceu no século XIX; ela é a obra de uma civilização, a nossa, que possuía uma superioridade técnica esmagadora sobre todas as outras, e que, ciente de que ia dominá-las e transformá-las completamente, disse a si mesma: é urgente que se registre tudo que pode ser registrado, antes que isso aconteça. É isso a antropologia; ela não é outra coisa: ela é a obra de uma sociedade sobre outras sociedades. E quando nos dizem que essas sociedades não são diferentes da nossa, que elas têm a mesma história que a nossa etc., esta não é absolutamente a questão. O que pedíamos a essas sociedades que estudávamos é que elas não nos devessem nada: que elas representassem experiências humanas completamente independentes da nossa. À parte isso, elas podem ter todas as histórias que se queira, mas essa não é a questão. Devem-nos elas o que são, ou não? Se elas nos devem, elas nos interessam moderadamente; se elas não nos devem, elas nos interessam apaixonadamente.

Viveiros de Castro
Nesse caso, à medida que começam a nos dever muito, elas nos interessariam cada vez menos?

Lévi-Strauss
Elas se tornam objeto de outras pesquisas, de outras disciplinas. Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas não significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a nossa se enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a trilhar o mesmo caminho que a nossa – isso é como as notas em um sistema dodecafônico, elas não têm mais um fundamento absoluto, elas existem apenas umas em relação às outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a música serial é diferente da música tonal.

Viveiros de Castro
Então o senhor não acredita no fim da antropologia, mas em uma mutação?

Lévi-Strauss
De fato, não acredito, e por vários motivos. O primeiro é que há ainda algumas possibilidades, como você mesmo demonstrou com os Araweté, Descola com os Jívaro... Nem tudo está acabado; vai acabar logo, mas enfim... não está completamente acabado. Em segundo lugar, há ainda, em toda parte, uma quantidade de coisas a rebuscar, coisas que foram, digamos assim, negligenciadas, e que se pode recolher, que é preciso recolher. O terceiro motivo, é que esses povos mesmos vão em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas próprias culturas, e assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela será algo interessante, e importante. Então, nem tudo está acabado; isto posto, a velha concepção de antropologia está morta.

Download do artigo aqui.
Download da entrevista aqui.


28 de out. de 2009

O surgimento da Civilização Grega

 O surgimento da civilização grega representa o ponto de partida da civilização ocidental e uma ruptura com o padrão até então conhecido de organização social e política - baseado em monarquias e tiranias. Pela primeira vez na história humana, pensou-se nos princípios e direitos fundamentais do homem, assim como houve um método de educação generalizado e um princípio de valor, a arete, que podia ser adquirido por todos - aliás, derivada da observação nas Guerras Persas de que homens extraordinários surgiram de várias classes, lugares e formas de governo, então tais qualidades fundamentais que os fizeram extraordinários não eram imanentes ao nascimento, mas aprendidas - e se tal aprendizado pudesse se estender a outros, que magnífica criação tal educação não seria...
Não tive tempo de legendar (ainda) esses vídeos onde o Professor Eugene Weber fala sobre o surgimento da Civilização Grega. Conjuntamente ao curso do Professor Donald Kagan, de Yale, disponível aqui, fornece uma base de conhecimento bastante completa sobre essa civilização que é nossa avó e a pedra fundamental do humano - pelo menos do humano válido. Para quem entende inglês, links abaixo. E trecho da palestra do Prof. Donald Kagan:

"As muitas civilizações criadas pela raça humana têm partilhado características básicas. A maioria tem tendência para a uniformização cultural e estabilidade. A razão, embora tenha sido empregada para todos os tipos de efeitos práticos e intelectuais em algumas dessas culturas, ainda carece de independência da religião e de status alto o suficiente para desafiar as mais elementares idéias estabelecidas. A forma padrão de governo tem sido a monarquia. Fora do Ocidente, repúblicas são desconhecidas. Líderes são considerados divinos ou porta-vozes de divindades. Crenças e instituições políticas e religiosas foram exaustivamente entrelaçadas como uma estrutura unificada e se apoiam mutuamente. O Governo não tem sido objeto de análise secular fundamentada - tem repousado sobre autoridade religiosa, tradição e poder. O conceito de liberdade individual não tem importância na grande maioria das culturas na história humana.

A primeira e nítida ruptura com esta experiência humana comum surgiu na Grécia antiga. As cidades-Estado gregas chamados poleis eram repúblicas. As diferenças de riqueza entre os seus cidadãos eram relativamente pequenas. Não houve reis com a riqueza suficiente para contratar soldados mercenários. Assim, os cidadãos tiveram de travar seus próprios combates e decidir quando lutar. Como defensores independentes da segurança comum e do interesse comum, eles exigiram um papel mais importante nas decisões políticas. Desta forma, pela primeira vez, a vida política realmente foi inventada. Observe que a palavra "política" deriva da palavra grega polis. Antes a palavra não era necessária, porque não existia tal coisa. Esta vida política veio a ser partilhada por uma parte relativamente grande da população e a participação na vida política era muito valorizada pelos gregos. Esses estados, evidentemente, não tinham necessidade de uma burocracia, não havia grandes propriedades reais ou estatais que precisavam de gestão e não havia excedente econômico para apoiar uma classe burocrática. Não havia uma casta separada de sacerdotes, e houve muito pouca preocupação, não digo nenhuma preocupação, mas muito pouca preocupação com a vida após a morte, que era universalmente importante em outras civilizações."

Os gregos adoravam e reverenciavam os deuses - mas somente os deuses. Ao contrário dos persas e de outras civilizações, nenhum homem seria adorado, eles não se curvariam perante ninguém, apenas e somente aos deuses.






27 de out. de 2009

Alban

N'Goran Alban Kikiish era de Camarões. Tinha feito Sorbonne e agora era meu colega na Ciência da Computação - falava inglês, francês e oito línguas africanas, mas português que é bom foi aprender só depois que chegou. Ficou folclórico na turma pelo sotaque esquisito e as tiradas mais que malucas, no que parecia uma reedição belorizontina do "Príncipe em Nova York". Na primeira festa em meu apartamento, na hora de ir embora ele saiu se despedindo de todos com uma palavra que soava como "tmahrumá", fazendo uma reverência. Engraçadíssimo, pois todo mundo respondia fazendo uma reverência idêntica e respondendo "tmahrumá" - "tmahrumá", "tmahrumá", etc. Dia seguinte, fui tentar aprender a cumprimentar em camaronês e ele me olha espantadíssimo: tinha aprendido a palavra aqui, todo mundo falava isso quando se despedia dele. E a reverência era porque estava bêbado, mesmo. Com algum custo, descobrimos que ele queria dizer "tomar uma", e realmente, é aquela coisa de mineiro engolir os pedaços das frases: vamos tomar uma depois, ou combinar de tomar uma cerveja depois, vira "tomar uma", com o resto implícito...
De outra feita, ele me perguntou intrigadíssimo "o que ser essa palavra você falar quando ver eu", e eu não conseguia imaginar qual fosse. Olá? Não. Bom dia, boa tarde, como vai? Não... Tudo bem, oi... nada. Fiquei um tempão tentando imaginar qual era a tal palavra e ele me afirmando que eu dizia isso com freqüência, e que ele não achava em dicionário de jeito nenhum. Até que chegamos num bar e ele pulou da cadeira quando eu cumprimentei o garçom: Bão, fi! - Essa, é essa, bãofí! Que ser bãofí? Difícil explicar a corruptela de "filho", mais ainda por que chamar um completo desconhecido - e ele - de "filho". E, além do mais, por que bãããão, com um tanto de a? Foram litros e horas antes dele esquecer o assunto.
Ele ficou completamente apaixonado com pequi - adorava, eu trazia de Salinas e ele ficava deliciado, comia dúzias como se a sesta dependesse disso. Quando o levei a Salinas, ficava ansioso pra saber se teríamos ou não pequi para almoço – e uma vez, numa fazenda, disfarçadamente seqüestrou um saquinho de pequis e foi comer escondido, todos devidamente ainda crus – voltou com o rabo entre as pernas e aquela cara de criança-malina-que-pegaram-no-pulo. De outra vez, assim que chegamos na fazenda de um primo, foi logo intimar o dono da casa, com aquele sotaque fortíssimo: E os pequi?, ao que meu primo respondeu impávido: Nou, ai dônti!, sacando seu inglês salinense para responder ao que ele interpretou como (do) you speak english?

20 de out. de 2009

Sagarana - Conversa de Bois

"Quase como um homem, meio maluco"



Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hojeem-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!
- Falam, sim senhor, falam!... - afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, - filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; - Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.
- Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: ... "Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!..." Mas, e os bois? Os bois também?...
- Ora, ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu...

Assim começa um dos contos geniais de Sagarana - Conversa de Bois. E a epopéia do boi Rodapião, uma espécie de Lúcifer-boi, ou Prometeu lá da raça bovina. Rosa, como sempre, tece e entretece tramas e palavras, chegando numa fábula quase mito, enredada na trama do menino que se faz boi, levando a vida ruminada, sofrida e limitada de um boi de carro:

(...)
... "Comigo, na mesma canga, prenderam o boi Rodapião... Chegou e quis espiar tudo, farejar e conhecer... Era tão esperto e tão estúrdio, que ninguém não podia com ele... Acho que tinha vivido muito tempo perto dos homens, longe de nós, outros bois... E ele não era capaz de fechar os olhos p'ra caminhar... Olhava e olhava, sem sossego. Um dia só, e foi a conta de se ver que ninguém achava jeito nele. Só falava artes compridas, idéia de homem, coisas que boi nunca conversou. Disse, logo: - Vocês não sabem o que é importante... Se vocês puserem atenção no que eu faço e no que eu falo, vocês vão aprendendo o que é que é importante... - Mas, por essas palavras mesmas, nós já começamos a ver que ele tinha ficado quase como um homem, meio maluco, pois não..."

17 de out. de 2009

Choques culturais

Há cerca de trezentos anos, o czar Pedro, da Rússia, visitou o Ocidente, e ao dançar com algumas das mulheres numa das cortes visitadas, comentou: "Essas mulheres têm os ossos mais duros que já vi!" - tinha segurado as damas pelo espartilho, confundindo a armação com o corpo das senhoras. Mas isso foi há trezentos anos, e sem nenhuma conotação além do espanto - e só mostra o choque cultural entre a Rússia ainda semifeudal e a Europa em pleno desenvovimento.
Agora, alguns fundamentalistas somalis resolveram chicotear mulheres por usar sutiã. Até aí, dado o histórico de loucuras desses fundamentalistas, entendível - quem já chicoteia mulheres em outras paragens por mostrar os cabelos ou qualquer outra parte do corpo que não os olhos é capaz de qualquer coisa. Mas o motivo é que eles estão se sentindo enganados! Podem ver uma mulher com os seios empinados e, depois, descobrem que estava usando um sutiã para levantá-los... um código de direito do consumidor completamente torto e ridículo. Imaginem esses botocudos soltos numa cidade ocidental, com todos os apetrechos disponíveis de embelezamento - perigoso saírem fuzilando todo mundo por aí.
Mas na verdade não entendi: será que eles estão se sentindo enganados por uma falsa libido? Não entendo esses fundamentalistas religiosos, pois não deveria ser pecado ficar olhando pras mulheres?! Ou eles estão com medo de casarem sob falso pretexto - mas nesse caso uma tara por seios não é um tipo de desvio de desejos da carne? Ou é a institucionalização da mulher objeto com vigilância do PROCON?
A reportagem, na Folha de hoje:

Grupo aplica chicotadas em mulheres de sutiã na Somália
DA REUTERS

Mulheres somalis que usam sutiã estão sendo chicoteadas em público pelo grupo radical islâmico Al Shabaab, acusadas de violar as leis do islã ao enganar outras pessoas, segundo relataram ontem moradores da capital do país, Mogadício.
As testemunhas contaram que homens armados cercam qualquer mulher que aparente ter um busto firme. Após ser chicoteada, ela ainda é obrigada a retirar o sutiã.


[reportagem completa para assinantes em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1710200913.htm]

15 de out. de 2009

Mesóclises

Eu acharia de bom tom banir a palavra "mesóclise" da língua portuguesa e transformá-la em nome de rio no Oriente Médio. O som foi feito pra isso - ou nome de cidade: "os hunos invadiram Mesóclise no quarto século" soa mais verdadeiro do que o uso em gramática.
.....Mas estou viajando. O Pasquale Cipro Neto, na Folha:
"Vamos por partes. Comecemos pelo "já encontra-se". O caro leitor conhece algum brasileiro que, no dia a dia, num bate-papo, diga algo como "Ele já avisou-me" ou "Ela já arrependeu-se"?
(...) Para ir direto ao ponto: um belo dia, a criança escreve uma redação em que há um período que começa com algo como "Me convidaram para...", em que ocorre um "crime", isto é, o emprego de pronome oblíquo átono (o "me", no caso) no início de um período.
O tal "crime" consiste em violar uma "regra" de colocação pronominal: não se inicia período com pronome oblíquo átono (me, te, se, lhe, lhes, o, a, os, as, nos etc.).
(...) Em Portugal, esse procedimento também é comum na língua oral. Um portuguesinho de tenra idade diz "Convidaram-me para uma festa". E diz isso por uma razão muito simples: é o que ele ouve em casa, na rua, na escola etc. Na oralidade do nosso português, há muito tempo não se diz isso. O que se usa efetivamente é, por exemplo, o que se ouve na comovente "Maninha", de Chico Buarque: "Se lembra da fogueira / Se lembra dos balões / Se lembra dos luares dos sertões"."

.....Essa colocação pronominal sempre me encheu o saco! Me dá aí um motivo pra não começar a frase assim, com "me", tirando "os gramáticos não deixam"? A língua escrita deve ser um registro ou transcrição da língua oral, não uma tradução dela. A gente fala de determinada maneira e quase temos que contratar um especialista com conhecimento de ABNT pra transformar essa fala em palavra escrita, se formos obedecer aos gramáticos. Tenho implicância com isso. E nem se fala na mesóclise, ao estilo Jânio, que tascava uns "fá-lo-ei", "segui-lo-ia", "comê-lo-ia" em conversas informais... temos que espanar a língua dessas velharias e deixá-la mais viva e próxima, mais pronta a ser moleca, brincalhona, viva. Tirar esses "não pode", "não se usa". Língua é pra gente se comunicar, e expulsa por si só as formas e usos que não se prestam a isso - uma espécie de sobrevivência do mais apto filológica.
.....Me lembrei de um caso do Tancredo: ele era governador de Minas e resolveu convidar um sujeito que tinha alcançado algum destaque na cena política mineira para ser secretário de governo. Como não conhecia o tal sujeito, marcou uma reunião para fazer o convite. O sujeito veio, conversou, conversou, tascou uns "ser-me-ia", "tirá-lo-ia", e a conversa ia andando e nada do convite ser feito. Meio sem graça, o sujeito se levantou, despediu-se e foi embora sem entender nada. Como, aliás, os assessores que tinham arranjado a reunião. Um deles tomou coragem e perguntou a Tancredo o que tinha acontecido. "Ele usa mesóclises!",  disse Tancredo, para espanto dos assessores. Diante do silêncio e das caras de incompreensão, encerrou: "um sujeito que é capaz de usar mesóclises numa conversa é capaz de qualquer coisa".

14 de out. de 2009

Jorge Luis Borges

Tenho uma certa antipatia por Borges. Ele me transmite uma aura de velhice, como se tivesse sido sempre aquele velho encarquilhado, com a poeira de mil bibliotecas sobre os ombros. Parece aqueles personagens do Nelson Rodrigues, que já nasciam de suspensórios e bengala, segurando um monóculo: e nem é a impressão de antiguidade de uma pirâmide ou coluna grega, é de casa abandonada.
......Certa vez, Garcia Lorca estava visitando a Argentina (estou contando o caso de orelhada), e ficou incomodado com a pretensiosidade e arrogância intelectual de Borges. Começou então a contar um caso quando Borges estava perto, sobre um personagem que ele, Lorca, considerava como a síntese das virtudes e defeitos do Novo Continente, um personagem seminal da imaginação criativa das Américas, etc. Borges não se agüentou de curiosidade, se aproximou e acabou perguntando quem era o tal personagem. "Mickey Mouse", respondeu Lorca gargalhando, para, segundo ele, ver Borges se afastar indignado "arrastando seu manto de erudição e sabedoria". Acho que é essa a impressão: Borges arrasta um manto pesado de erudição, sempre.
......Mas que imaginação criativa, que cadeia de referências, que labirinto de imagens! Tece caminhos e trilhas entre passado e presente, enreda a imaginação do leitor e constrói um arcabouço de citações e personagens que fascinam e mesmerizam como nenhum outro. Borges constrói edifícios que talvez entendamos como sendo construídos na localização errada, meio deslocados, mas que são, inegavelmente, estupendos.
......Em um dos contos do Aleph (O Imortal), um tribuno romano parte em busca da imortalidade. Encontra a Cidade dos Imortais, habitada pelo que parecem ser trogloditas sem conhecimento da palavra falada. Borges faz do conto um trampolim para discutir a memória, a experiência humana, a duração e interação do tempo, espaço, palavra, ser:

(...)
A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe.

(...) (vem a chuva)
...a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.

Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: "Argos, cão de Ulisses". E depois, também sem olhar-me: "Este cão atirado no esterco".

Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.

"Muito pouco", disse. "Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei."

13 de out. de 2009

Vik Muniz


No filme que acompanha a mostra, Vik diz que o primeiro artista da humanidade foi o homem das cavernas que, tendo saído um dia para caçar, confunde um cupim ou formigueiro com um bisão; percebendo o erro, volta para a caverna e avisa aos demais que tem um bisão lá pelo lado tal, se esconde atrás de uma moita e fica rindo enquanto vê os demais atirarem suas lanças no cupim. Assim como o artista ancestral, parece que suas obras buscam essa multiplicidade do ver - aliás, a multiplicidade da interpretação ao ver, enquanto o próprio artista se diverte em iludir o olhar para conseguir esse efeito. Fotos famosas, referências, personagens, situações, são mimetizados em outros tantos materiais como chocolate, diamantes, linhas, arames, sucatas. Meninos caribenhos vítimas da monocultura do açucar são representados usando açúcar sobre papel preto - "doce" demais, principalmente porque o apresentador da mostra resolve "explicar" o fato, mas eficiente. Uma vaca com uma vaca pintada no corpo: a brincadeira do homem das cavernas está presente em toda a obra, mas de uma maneira que o espectador está sempre convidado a descobrir o truque, o efeito, a perceber como está vendo a obra - paisagens modificadas por retroescavadeiras misturadas com intervenções em terra de 30 centímetros, produzindo traços semelhantes: a brincadeira com escala, quase um "mundo-modo-de-usar". Finalmente, um artista conceitual com conceitos inteligíveis. Vale a pena ver, está no Museu Inimá de Paula, na Rua da Bahia (esquina com Álvares Cabral).

PS: Um cuidado especial com o apresentador da mostra: igorem o sujeito. Depois de ler duas frases suas me lembrei do Umberto Eco em "Como ser um apresentador de catálogos de arte", no Segundo Diário Mínimo. Eco constata que os requisitos necessários para tal "arte" são: ter uma profissão intelectual (biólogos e físicos nucleares são solicitadíssimos) e possuir um telefone em nome próprio. Não se explica o que se deve descobrir, não se dá uma visão simplista de uma obra que tira grande parte de sua força pela surpresa e novidade, nem se adoça o olhar crítico do autor com platitudes doces. Pelo menos, não se devia.

8 de out. de 2009

Casos - O Ganso e o Capeta

O GANSO do título, no caso, era um grande amigo, falecido recentemente. Que, entre todas as (muitas) idiossincrasias, tinha medo do escuro. Certa vez, quando eu morava em uma chácara em Santo Antônio do Leite, o hospedei por alguns dias. Num desses dias, tendo me demorado mais do que o normal no trabalho, cheguei em casa já mais tarde da noite e vi tudo - tudo mesmo! - aceso. Parecia uma festa: televisão ligada, fogão com todas as bocas acesas, todas as luzes existentes ligadas, o rádio numa altura doida e o carro dele todo torto no caminho da casa com farol aceso, iluminando a parte de trás da chácara. Quando entrei em casa ele deu um pulo como aqueles de gato de desenho animado, que fincam as unhas no teto, com os olhos quase saltando das órbitas de tão arregalados."Que foi que aconteceu?!", perguntei, e ele, disfarçando, "Nada não, nada não...".
......Em Ouro Preto, onde ele estava morando, me pedia para dormir na casa dele sempre que a esposa se ausentava - pra ajudar a "tomar conta da casa". Como ele morava em apartamento, recusava, e ele quase se ajoelhava pra pedir pelamordedeus e eu acabava cedendo, depois dele confessar que tinha medo do escuro.
......Mas resolvi confrontá-lo e tirar isso a limpo:
- Você tem medo de escuro mesmo?
- Bom... não de escuro, escuro, mesmo... mais de ficar sozinho.
- Mas do que é que você tem medo?! De alma?
- Não! De alma não...
......Depois de muita, muita insistência, ele acabou contando:
- Tenho medo é de capeta...
- De CAPETA?!?!
- É, tenho medo do capeta aparecer de noite, explicou ressabiado, meio envergonhado.
- Mas o que diabos você acha que eu posso fazer se o capeta aparecer?
- Você, nada. Mas você tá gordo, e se o capeta aparecer, eu corro mais do que você!
......Pois o miserável, a quem por amizade e consideração eu fazia companhia nessas noites de terror dele, não estava querendo minha companhia nada não. O féadaputa estava era me usando de isca de capeta!!!

7 de out. de 2009

A aventura do conhecimento

O conhecimento humano é, provavelmente, a maior e mais deliciosa aventura que conheço. Chamam a prensa de Gutemberg de "a máquina que nos fez", e com razão. Quando a aventura humana deixou de ter que ser vivida pelos participantes, ou passada de geração em geração na mesma tribo ou clã, e passou a ser escrita e trocada e traduzida e levada aos quatro cantos do mundo, expandiu de tal forma os horizontes do ser como provavelmente nenhuma outra invenção ou evolução tecnológica jamais conseguirá. Passamos a dividir toda e qualquer experiência de praticamente todas as raças e épocas, numa espiral cada vez mais apaixonante e interessante.
Edmund Wilson personificou esse fascínio pelo humano - tinha uma curiosidade insaciável pelo mundo e suas experiências, pelas pessoas, feitos, história e pensamentos humanos. Seus livros são formidáveis, e denunciam o gosto do autor por essa busca incessante. Em nenhuma parte isso é tão explícito quanto em Rumo à Estação Finlândia, onde ele descreve como Michelet, historiador francês, descobre Vico e sua obra, numa passagem que ecoa o gosto pela palavra escrita, pela descoberta e pelo pensamento transformador do mundo:
"Num dia de janeiro de 1824, um jovem professor francês chamado Jules Michelet, que ensinava filosofia e história, encontrou o nome de Giovanni Vico numa nota do tradutor do livro que estava lendo. A referência a Vico interessou-o tanto que começou a estudar italiano imediatamente."
(...)
"Mesmo hoje, ao lermos Vico, podemos sentir algo do entusiasmo de Michelet. É estranho e comovente encontrar, na Ciência Nova, uma inteligência sociológica e antropológica moderna despertando em meio à poeira de uma escola de jurisprudência provinciana do século XVII e expressando-se pelo antiquado meio de um tratado semi-escolástico. Aqui, através da visão precisa de Vico - quase como se contemplássemos as próprias paisagens do Mediterrâneo - vemos dissiparem-se as névoas que obscurecem os horizontes dos tempos mais remotos, vemos evanescerem-se as nuvens da lenda. Nas sombras há menos monstros; heróis e deuses evaporam-se. O que vemos agora são os homens tal como os conhecemos, no mundo que conhecemos. Os mitos que nos fizeram sonhar são projeções de uma imaginação humana como a nossa, e - se procurarmos a chave em nós mesmos e aprendermos a lê-los corretamente - esses mitos nos apresentarão a história das aventuras de homens como nós, um relato a que antes não tínhamos acesso."

6 de out. de 2009

Gramática

A nossa gramática enche o saco. Normativa, não é rápida o suficiente pra se adaptar à lingua, de que devia ser apêndice, mas se pretende guia, senhora e mestra. E os gramáticos demoram a dar o braço a torcer, que ao invés de uma espécie de antropólogos da língua se pretendem generais das letras. O Stephen Fry diz que não há má gramática, só má sintaxe, e está certíssimo. Como tudo o mais no Brasil e seus congêneres íberos, tudo tem que ser regulado - a nossa gramática é uma espécie de cartório da língua. A reforma ortográfica não vai ajudar em nada nisso, uma vez que é muito mais pra português ver. O dia a dia, as contrações, invenções, adaptações e maneirismos ficam de fora, uma pena - espero chegar um dia em que a ênfase esteja não em escrever corretamente (segundo princípios arcanos), mas escrever bem. Um manifesto:

"O usuário deve usar a ortografia com total liberdade e mesmo rebeldia. Quanto à gramática, deve ser rejeitada qualquer uma imposta pelos gramáticos. Nenhuma língua morreu por falta de gramáticos. Algumas estagnaram por ausência de escritores. Nenhuma sobreviveu sem povo."
Millôr

4 de out. de 2009

Pedro

Meu sobrinho vai fazer sete meses - mal e mal engatinha, mas tenta andar como um novo Neil Armstrong, dando passos incertos na superfície da Lua. Curioso, todo e qualquer objeto é alvo de suas investidas - uma versão aprimorada de São Tomé que só acredita vendo, tocando e pondo na boca. Também fala uma espécie de subdialeto klingon, que pelas sobrancelhas cerradas e a cara de bravo, não entende como é que a gente não entende o que ele quer.Um telefone, uma pêra, um imã de geladeira, lâmpadas, ventiladores de teto, pilão (esse, um fetiche especial), bolas: atraído imediatamente por qualquer deles, já demonstra um pragmatismo inato e vai pulando de colo em colo até chegar aonde quer. Ninguém resiste aos bracinhos levantados e àquela carinha e pega no colo, morrendo de orgulho por ter sido alvo de uma manifestação espontânea de afeição do pestinha - e já ele levanta os bracinhos de novo, "pulando" pra outro colo e revelando a intenção verdadeira que é chegar perto dos imãs de geladeira, de uma fruta, de uma coisa qualquer que se mexeu. Depois de encantar todo mundo e bagunçar, pular, brincar, chorar, pegar, rir, falar, desmaia e vai dormir. E a gente, criança de novo, faz aquela coisa de minino pequeno, ahhhhhhh....


2 de out. de 2009

Faroeste e Cavalaria

Ah, Zé Bebelo era o do duro – sete punhais de sete aços, trouxados numa bainha só! Atirava e tanto com qualquer quilate de arma, sempre certeira a pontaria, laçava e campeava feito um todo vaqueiro, amansava animal de maior brabeza – burro grande ou cavalo; duelava de faca, nos espíritos solertes de onça acuada, sem parar de pôr; e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia.

.....Zé Bebelo é uma das grandes criações de Guimarães Rosa - em Grande Sertão: Veredas, junto com Joca Ramiro, parece ter vida própria, assombrando o livro com suas estripulias, suas valentias e fanfarronices. Não aceitando nunca errar, uma vez se perde e reclama: “Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar!..." Tenta conquistar o sertão, botar ordem no caos de jagunços e coronéis, perde, é julgado e poupado por Joca Ramiro, numa cena antológica. Aliás, Grande Sertão está cheio dessas cenas de uma tensão e beleza que maravilham qualquer um, cenas de cinema, e ainda com uma carga emocional e uma densidade dignas da melhor literatura mundial, sem falar na construção lingüistica de Rosa. Como nos romances de cavalaria medieval, os jagunços se comportam por um código particular de conduta, onde a bravura e a honra são as estrelas-guias dos homens.
.....Zé Bebelo é derrotado por Joca Ramiro; exilado em Goíás "até a minha morte" - de Joca Ramiro - quando este é assassinado a traição, volta pra vingar o benfeitor. E volta em grande estilo, numa cena de arrepiar - a coragem e valentia de um homem que acredita que sua vontade é superior ao mundo e que a honra é o tempero e o norte do universo:
(...)
Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos – Marcelino Pampa, eu e João Concliz, – não se teve nem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o desapeio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam-de mestre pavor. – “Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa. Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar...” – e empurraram um pouco o vaqueirinho. De medo – a gente olhava para ele – e de nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e soluceou:
– “É um homem... Só sei... É um homem...”
– “Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde é que está indo?” – Marcelino Pampa regrou.
– “É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio Paracatu, numa balsa de buriti...”
– “Que foi mais que o homem fez?” – então João Concliz perguntou.
– “Deu fogo... O homem, com mais cinco homens... Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros eram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O homem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho. Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram naca de carne...”
– “Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?”
– “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros falam e tratam: `Deputado’. Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... – ‘Estávamos em jejum de briga...’ – ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... Nem cavalo eles não têm...”
(...)
Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás.
– “Vim de vez!” – ele disse; disse desafiando, quase.
(...)
Zé Bebelo rodeou todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte:
– “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...”
Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas.
Vez de Marcelino Pampa dizer:
– “Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.”
– “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.”
Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado:
– “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens...”

E daí se seguem mais algumas aventuras de Zé Bebelo, o rompe-racha, cabra da peste, homem entre os homens, herdeiro de Medeiro Vaz, o rei dos Gerais, e Joca Ramiro - e, por que não?, Rolando, Parsifal e outros valentes das gestas.

1 de out. de 2009

Belau dos Dois Capões

Narciso Durães, salinense da Matrona, poeta e literato, autor de vários livros que estão entre a melhor produção recente da região (e não só), escreve abaixo num contraponto ao post anterior sobre a (boa) poesia provençal, tão antiga e tão contemporânea:


Caríssimo, já percebeu que não consigo responder diretamente para seu blog, não sei porquê. Então vai por e-mail um fragmento do Auto de Belau dos Dois Capões, repentista norte mineiro que encantava os sertões com seus versos até ser assassinado num sábado de feira numa corruptela da Serra do Espinhaço e que se apresentava assim:

Eu não descendo de espermatozóide assustado
nem desci do céu numa tipóia de cegonha
vi a luz quando o orangotango meu antepassado
se apercebeu entre a verdade e a vergonha.


Não confundo louva-a-deus com pai de cobra
mas pretendo reencarnar num urutu alado
sair por ai feito um jararacuçu desembestado
pelos cafundós do Vale do Jequitinhonha!

Encantava o mundo com versos dessa natureza:

Um dia Dulcinéa mostrou a Dom Quixote
as almanjarras do moinho girando nas idéias
e no redemoinho rodopiavam cordeiros e alcatéias
feito a rodilha da serpente em seu bote.


Cervantes não misturava medusas e medéias
nem Dante se imaginava o sumo sacerdote
ando ambananado feito oropas sem colméias
mas sei em que ponto do repente entra o mote.


Peitava os coronéis com estrofes magníficas:

Eu me posiciono sem estardalhaços
repartindo espaços com baobás e querubins
ventos que varrem caparaós e espinhaços
levarão o pó dessa carcaça a Deus por mim.


Então a gazela tirará vingança do mastim
e o dragão fará São Jorge em estilhaços
certas vitórias se parecem com fracassos
certos abraços são afagos de judas e caim!


Já em outro plano psicografou o verso que encerra sua trajetória:

Tive a existência abreviada pela mão facista
de um cangaceiro chucro, traiçoeiro e louco
o meio do inferno pr´esse fi de rapariga é pouco
eu quero vê-lo nos assombros da penumbra cardecista.


Breve e pura e doce feito mel é a alma repentista
a do jagunço, ao contrário, amarga mais do que quitoco
e mesmo na sombra de uma tumba desencarnado e brôco
o desgraçado de acusava: cocaleiro, poeta e marxista!


Pois é, como se nota, a valentia de um menestrel provoca mais estragos que muita bravata de general por aí.
Abraços.

Narciso Durães

30 de set. de 2009

Papiols!

Papiols! À luta! Não tenho vida se não ouço o cruzar de espadas!
Papiols! Todo esse nosso sul fede paz!

.....Essas exclamações guerreiras partem de Bertran de Born, poeta e senhor da guerra. Viveu há mais ou menos seiscentos anos, numa época e região que foram esquecidas pelo tempo. Pound revive esse poeta em seu livro Personae, num magnífico poema que é Sestina: Altaforte. Agora a voz do próprio Bertran, vinda de seis séculos atrás:

.....O dia todo me esfrangalho
.....E esgrimo e resisto e retalho.
.....Movem-me guerra com alarde,
.....Já minha terra toda arde
..........Não há valente nem paspalho
...............Que contra mim, ou cedo ou tarde,
..........Não arremeta o seu chanfalho.

.....Os poetas provençais e suas poesias e canções chegaram até nós pobre e parcamente em forma de poesias de amigo, de escárnio e de maldizer e outras denominações. São ensinadas por alto e porcamente nas escolas a alunos entediados, pois essas canções como as de Bertran não entram no currículo. Entram umas porcarias sem-gracinhas, carolas, bestas, despidas de qualquer interesse pra qualquer pessoa em sã consciência, e ainda mais para estudantes de nossa época.
..... Lembro-me de que a poesia mais "transgressora" que vi quando menino era uma do Bocage, acho que "nariz, nariz, nariz / nariz que nunca se acaba / nariz que se o cálculo não erra / posto entre o céu e a terra / faria um eclipse total", e olha que Bocage é de outro tempo, e mesmo assim essa poesia é, no máximo, engraçadinha. Anos depois, descobri uma do bisavô do Ricardo Coração de Leão, aquele do Robin Hood, que proclamava em alto e bom som:

.....Chamam-me o "mestre sem defeito":
.....Toda mulher com quem me deito
.....Quer amanhã rever meu leito;
.....Neste mister sou tão perfeito,
..........Tenho tal arte,
.....Que tenho pão e pouso feito 
..........Por toda parte!

.....Essa declaração é do surmâle de 900 anos atrás, 7º Conde de Poitiers, 9º Duque da Aquitânia, que foi "um dos maiores galanteadores do mundo e um dos maiores enganadores de mulheres e bom cavaleiro de armas e magnífico na arte de cortejar", segundo sua razo, sua biografia. Me chamou a atenção não pelo sexismo mas por tornar vivas as cores das figuras medievais, pra mim então bidimensionais e chapadas nos livros de história. E, claro, pela força da poesia, que encanta até hoje.
.....Queria poder dar aos estudantes a possibilidade de se encantarem com essas poesias medievais verdadeiras, que têm uma temática às vezes abertamente erótica ou amoral pelos nossos padrões atuais, mas que fazem isso com uma clareza e inocência de arrepiar. E o mais interessante delas não é só a temática, mas a construção de uma poesia quase música, descobrindo formas de relacionamento entre sons e sentidos, os signos em rotação que girariam a roda da arte até nossa própria época.
.....Alguns desses poetas fizeram versos que estão entre os melhores de todos os tempos, mas são excluídos dos currículos pelo mesmo tipo de mentalidade eqüina que substituía os palavrões e obscenidades de Bocage por asteriscos. Um verso como "seu belo corpo aos beijos rindo abra / e que o remire contra a luz do lume" devia figurar entre os exemplos de beleza e concisão pra qualquer pestinha disposto a escrever minimamente bem. E não há estímulo melhor para a poesia e literatura - ou mesmo vida - que sentir a energia pulsante que salta desses poetas, que viviam intensamente, cortejavam, guerreavam, cantavam, bebiam, trepavam - e escreviam magnificamente bem.

* As poesias aqui (exceto as duas primeiras linhas) foram traduzidas por Augusto de Campos. O melhor da poesia provençal pode ser encontrada nos seus livros Mais Provençais e Verso, Reverso e Controverso
.....Cla
.....

29 de set. de 2009

Santa diplomacia, Batman!



As séries e programas antigos de televisão há algum tempo voltaram a ser exibidos com uma aura "cult", agora com adjetivos chiques como "retrô" ou "vintage". E são gostosas de ver, tanto a inocência dos roteiristas, atores, diretores, quanto a inocência que se esperava do público, para que o conjunto funcionasse. Os efeitos especiais são um capítulo à parte, tão toscos que a gente acaba reagindo como em frente a um bebê ou um cachorrinho, com um "que gracinha!". Um dos melhores é o antigo Batman estrelado pelo Adam West: um Batman barrigudo e vestido como menino em festa a fantasia, que na hora da porrada mostra balões (!) escritos, "bum", "paft", "zuum", na tela, hilário. Além dos roteiros pra lá de estrambólicos, mesmo para uma série de super-herói, e um companheiro mais novo que se tornaria moda na época e gozação nas décadas seguintes, pela sugestão de homossexualidade. E ainda por cima, o Robin adorava "santa": era "santa mente criminosa, Batman!", "santa saída secreta, Batman", "santa engenhosidade, Batman" - uma piada pronta.
.....Bom, claro que não é sobre isso que eu queria falar - estou me transformando numa "flor de obsessão", como o Nelson. Essas séries inspiravam as crianças, que imitávamos os HT, os Heróis da TV - eu mesmo já fui Super-Homem, Homem-Aranha, Batman e, pra salvar um pouco a honra da firma, Pirata e Darth Vader. Mas o Lula tá crescidinho demais pra brincar por aí com fantasias infantis, ainda mais as pervertidas pela ideologia. Ao invés da defesa dos fracos e oprimidos, como os antigos heróis vintage, é a defesa do socialismo bolivariano (que aliás não tem nada nem de socialista nem de bolivariano), da permanência eternizada no poder através de reeleições sucessivas num simulacro democrático, dos projetos personalistas de poder a la Fidel. E santa diplomacia, Batman! O Barão do Rio Branco deve estar rolando na cova, pois essa semana foi de lascar: nossa versão latino-americana de Zorro e Tonto apoiaram um egípcio anti-semita, racista e sexista para a Unesco (logo pra onde!), em troca de "simpatia" pelas "demandas brasileiras" como o assento no Conselho de Segurança da ONU, e deram com os burros n'água, que o resto do mundo não acompanhou a sandice e o sujeito perdeu a eleição; Lula elogiou o presidente do Irã após mais uma negativa do Holocausto, sem fazer nenhuma ressalva, o que é uma concordância tácita em qualquer manual tupiniquim de diplomacia; e deixou o Zelaya fazer comícios na embaixada brasileira em Honduras, numa interferência em assuntos internos de outros países que chega a ser inconstitucional, além de estúpido, perigoso e incompetente. Uma coisa é ser contra o golpe, condená-lo, pressionar pela volta do presidente deposto; outra, muito diferente, é tentar enfiá-lo goela abaixo do governo golpista, sendo um país estrangeiro.
.....Em cada uma das festas infantis tem uma criança que chega sem fantasia e logo começa a infernizar os pais até conseguir uma, e aí corre pra voltar e mostrar pros colegas - é minha interpretação do que o Lula está fazendo. Como criança gulosa e sem limites, morrendo de inveja da atenção que o Cháves recebe, comprou sua fantasia e agora está se exibindo por aí... Num dos episódios do Batman com Adam West, ele e Robin se vêem presos num edifício prestes a explodir, com um relógio dando os últimos tiquetaques, Robin com a cara de terror e tal, de repente o Adam West saca um spray e psssss, sai jogando isso nas paredes – logo depois vem a explosão e os dois estão intactos! Adam West olha superior para Robin e solta: “ainda bem que eu me lembrei de trazer o bat-pó-anti-explosão!” A incongruência da solução mata qualquer um de rir. Mais ou menos como Lula e Marco Aurélio Garcia e as suas soluções mágicas para se tornarem atores diplomáticos internacionais. Se você quer atrair atenção numa festa, pode muito bem pular num pé só com um nariz de palhaço ou sair correndo pelado pintado de vermelho. Com certeza vai atrair a atenção do público. E com certeza não será o tipo de atenção que você gostaria. Mais ou menos como o Lula dando espetáculo nos palcos internacionais. Se fosse eu, jogaria um peixe a cada asneira dita, como se faz com as focas.

27 de set. de 2009

Realismo

"Quantas divisões tem o Papa?" Essa pergunta de Stalin sugeria que o Papa podia reclamar o quanto quisesse, que reclamar era tudo que ele podia. "Onde está o testamento de Adão"? Perguntou Francisco I, da França, ao ser informado do Tratado de Tordesilhas, que dividia o mundo entre Portugal e Espanha. "Paris bem vale uma missa", disse Henrique de Navarra, ao abraçar o catolicismo para poder reinar sobre a França. Todos eles de um realismo político que beira o cinismo completo. A melhor, no entanto, é a conversa de Mao com Nixon - este dizia ao colega chinês que era um contrasenso terem armas de destruição em massa capazes de destruir toda a população mundial várias vezes: "Não", retrucou Mao, "meus cientistas dizem que depois de usadas todas as nossas armas, vocês serão varridos do mapa, mas ainda restarão três ou quatro milhões de chineses. É o suficiente pra nós recomeçarmos!" Nixon deve ter engolido em seco diante do lunático à sua frente.
Há uma diferença gritante, claro, entre realismo político e tráfico de influência e poder, troca de cargos, nomeações, apadrinhamentos, aparelhamento, venda de votos, alianças espúrias e coisas mais. Quando disseram que "política é a arte do possível", alguém ia imaginar que o sujeito estava se referindo na verdade à maior corrupção possível, à maior enganação possível, ao maior descaramento possível e por aí vai? Eu esperava que não. Em vão. Esses dias, na Folha, saiu o caso do Edvaldo Nilo, que era prefeito de Antas, na Bahia. No final do madato, resolveu apoiar seu cunhado, que era da oposição e tinha sido seu adversário na eleição anterior. Apesar de estar no palanque, via os correligionários do ex-adversário meterem o pau na "atual administração". E a "atual administração" era ele, Nilo. "Medíocre", "incompetente", eram alguns dos epítetos do "atual prefeito". E o Nilo aplaudindo. Quando perguntado se ele não se sentia ofendido, respondeu: - "Meu rapaz, nem eu lembro em quem votei na eleição passada. Imagine então esse povo aí embaixo!". Enquanto isso e enquanto assim, se perpetuam sarneys e lulas e renans e demais, antas que somos. Quantos neurônios tem o eleitor? Para mudar a atual situação, a memória do nosso eleitorado tem tanto poder de fogo quanto as divisões do Papa.

25 de set. de 2009

Os banhistas de Arcimboldo


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Ali no Rio, aquela mata atlântica próxima às praias dá a impressão de um estouro de banhistas repentinamente transformados em árvores, flores, plantas, cada qual mais multicolorida que a outra, verdes de tons nunca dantes desenhados, parecendo que se acotovelam pra ver quem consegue um lugar ao sol, uma nesga de paisagem. Imaginem um quadro do Arcimboldo, um Arcimboldo alegre, usando todas as cores da paleta para desenhar banhistas e pronto, taí a natureza brasileira. Ou uma página de Ovídio, uma metamorfose coletiva de foliões correndo para o mar. Em uma praia próxima a Parati, certa vez, os verdes e azuis e amarelos e vermelhos estavam tão destacados, eram tantas as árvores e flores, tão próximas à praia, umas meio que penduradas sobre o mar, que a única coisa que pude pensar olhando pra elas foi "estão brigando pelos seus 15 minutos de fama"! Os filósofos europeus como Descartes e Galileu diziam ler o livro da natureza através da linguagem matemática, triângulos, retas... uma natureza que tentavam fazer caber em seus compassos, réguas e papéis:

A filosofia está escrita nesse imenso livro que continuamente se acha aberto diante de nossos olhos (falo do universo), mas não se pode entender se antes não se aprende a compreender a língua, e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele vem escrito em linguagem matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível para os homens entender suas palavras; sem eles é rodar em vão por um labirinto escuro. (Galileu Galilei)

Imagino aqui, cercados por essa exuberância, onde até as cores são despudoradas, se teriam ainda essa leitura tão racional. Não sei qual filósofo ou antropólogo exclamava: "infeliz do país que tem bananas"! Dão o ano inteiro e não precisa plantar, teoricamente liberando os viventes à sua volta para o ócio criativo. Mas acho que nesse caso nossos avós tupiniquins olhavam ao seu redor, olhavam para o céu, e não viam matemáticas, retângulos, hipotenusas: sonhavam fábulas, carnavais, folias.

23 de set. de 2009

Já vi esse filme...


Escrevi sobre a semelhança entre a aliança de Lula com os "trogloditas" e outros com uma cena do filme O Poderoso Chefão III. Hoje veio outra imagem à cabeça: Star Wars! Não os novos episódios, os anteriores, da década de 70. Os Rebeldes lutavam contra o Império, e Luke Skywalker liderava um bando de guerreiros contra as hostes do Mal, o lado negro da Força, representado pelo Darth Vader. Mas agiam como os três patetas! Os Rebeldes iam atacar uma base ultrasecreta escondida em uma floresta num planeta remoto, uma base de um Império ultratecnológico, dotado de todas as armas, soldados, tecnologia, etc., e a tática adotada por Luke é... andar na ponta dos pés! Elementar, meu caro Watson! Devia estar usando o patético como arma de guerra, ou tentando matar o outro lado de tanto rir. Mas, como bom mocinho num bom filme hollywoodiano, ele ganha, derrota o Império, reestabelece a República, etc. Lembra muito o Lula e seus sequazes: colocam dólares nas cuecas, compram dossiês, cometem dezenas de irregularidades, agem como patetas e aloprados, e ainda assim conseguem algum sucesso. No caso do Lula, é o poder do senso prático, acho, que o livra de cair na esparrela completa. Mas que o governo lembra esses filmes B, lembra. Nesse episódio do Zelaya em Honduras, por exemplo, o goveno fez como o Super-Homem faz pra manter a identidade secreta: bota óculos e záz!, vira o Clark Kent, e é impossível, com tal disfarce, identificar qualquer semelhança entre os dois... risível, e o nível de credulidade necessária para se acreditar nessa solução é a mesma que se exige da opinião pública para que acredite que o governo não teve nada a ver com a ida de Zelaya para a embaixada brasileira. Pelo menos chamem o Didi, dos Trapalhões, pra coordenar a coreografia, pô. Deve ter sido por isso o apoio à Lei Geral das Religiões: necessário estimular a credulidade entre a população, senão daqui uns dias a oposição é capaz de desmentir a existência de duendes e seres da floresta, como defendido pelo Minc Leão Dourado.

22 de set. de 2009

O rei está nu


O Presidente esses dias cometeu mais uma das suas sandices verbais - dessa vez não foi um atentado à gramática, mas à realidade. Disse que pela primeira vez desde 64, nessa próxima eleição não haverá nenhum troglodita da direita concorrendo à presidência - e disse isso como se não soubesse que eles estão todos ao seu lado: Sarney, Collor, Renan Calheiros e dezenas de outros. Lula é um mestre do ilusionismo e da trapaça mental. Sabe muito bem onde estão os trogloditas, mas usa a ilusão de que por não estarem concorrendo estarão fora do poder - aliás, tenta dar a entender que não tem nada a ver com eles. É de lascar.
.....Poucas vezes tivemos tal hegemonia da situação no país, com uma oposição tão incompetente ou emaranhada como essa. Os maiores problemas do governo foram criados pelo próprio governo ou seus aliados: mensalão, aloprados, crise do senado e por aí vai. A oposição só se aproveitou da situação, mas foi incapaz de viver por si só, respirando pelos aparelhos da incompetência governamental.
.....Darcy Ribeiro, durante o golpe de 64, encontrou-se com um general no Palácio do Planalto, ele fugindo e o general tomando militarmente o lugar, e tascou: "estou vendo pêlos crescendo na sua cara - o senhor é um macaco"! Os trogloditas tomaram o poder, então. Ficaram por mais de duas décadas, e uma de suas crias assumiu pela morte de Tancredo - José Sarney . Vice que veio no pacote de apoio da parte dos governistas que não estava disposta a engolir Paulo Maluf, José Sarney tinha sido esteio da ditadura e presidente obediente do seu partido de apoio, o PDS, ex-Arena. Essa historinha famigerada respinga também na oposição: esse grupo dissidente da ditadura veio a formar o PFL, atual DEM.
.....Não sei, presidente, se estão crescendo pêlos nos petistas - acho que cresceram os olhos, no poder, no dinheiro, na corrupção, nas eleições fáceis compradas pela distribuição de pão e circo, na corrupção da maioria da população, que ganha caraminguás do novo pai dos pobres enquanto este se refestela com os novos amigos, aqueles mesmos trogloditas de sempre. Mas são trogloditas endinheirados, subservientes, gentis... como os canibais que deixam o missionário bem alimentado. Aliás, não é essa a principal imagem que vem à cabeça, não: fiquei me lembrando do filme O Poderoso Chefão III. Nele, o mafioso Michael Corleone tenta se tornar o chefão de um negócio multibilionário e portanto o capo di tutti i capi, o chefe dos chefes. Chega numa reunião e o verdadeiro chefão se revela e diz pra ele: "Sim, você será o comandante da frota. Mas somente se os nossos navios velejarem na mesma direção". Alguma semelhança?

21 de set. de 2009

Preconceitos



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.....Machado de Assis gostava de uma frase em latim que era homo sum: humani nihil a me alienum puto. Belíssimo, é um verso de Terêncio, e diz sou homem: nada do que é humano me é estranho. Antigamente, junto com o conselho de Rimbaud quanto ao dérèglement de tout les sens - o desregramento de todos os sentidos, tive a ambição juvenil de me atirar em todas as experiências sensoriais, beber a vida em grandes goles para, ao terminar a aventura humana, poder dizer essa frase orgulhamente, como um capitão de longo curso de Conrad ou Hemingway. Mas não era sobre isso que eu queria falar.
.....Machado terminava essa frase sempre antes do puto - tinha medo de ser mal interpretado. Puto, putus, puta, putum, putare, putavi, putatus: crer, acreditar, em latim. Mas convenhamos que é muita putaria mesmo pra um verbo em latim.Ou era: atualmente, além da raridade com que usamos latim, puto e suas putarias deixaram de ser verba non grata e podem ser usados à vontade sem causar desconforto. Tempora mutantur, nos et mutantur in illis, os tempos mudam e mudamos com eles. Mais recentemente, essa frase que o Machado temia usar pelo puto e suas conotações putativas(!), demonstra o caminho dos preconceitos de duas formas diferentes: o feminismo (ou melhor, o politicamente correto), de um lado, e a homofobia, do outro. Alguns autores, nas últimas décadas, usaram de todas as formas possíveis para evitar o homo, por suas implicações sexuais - "sou homo suas nêga", no dizer do branco homófobo. Colocavam o próprio nome, mudavam a voz, o sujeito, tudo para evitar a palavra proibida e suas conotações. Também mais recentemente, alguns autores trocaram o homo pelo humanum, por conta do politicamente correto: o sou homem pelo sou humano, o que torna a frase óbvia, além de perder completamente o poético. A idéia é de que usar homem para representar o gênero humano é incorreto e depreciativo com as mulheres. Pode até ser, mas conta isso pro Terêncio... Sobre essa igualdade entre homens e mulheres, fiquei espantadíssimo ao descobrir que só depois da Segunda Guerra as mulheres francesas tiveram direito a voto! E os direitos dos negros nos EUA somente foram assegurados e igualados aos dos brancos na década de 60. O tempora, o mores! Ah, o tempo, os costumes! Cícero já os achava atrapalhados há dois mil anos. Atualmente estamos cada vez mais próximos de resolver - ou minimizar até o aceitável - uma boa parcela desses preconceitos. Mas, macacos nus que somos, e vendo o reflexo da nossa incompreensão mútua nessa simples frase, com certeza criaremos outros. Humani nihil a me alienum puto.

18 de set. de 2009

Palavras, palavras...

O pintor Degas certa vez confidenciou ao seu amigo, o célebre poeta-inventor Mallarmé, que achava que poderia ser um excelente poeta - "tenho dezenas de idéias simplesmente maravilhosas para poemas", disse ele. Mallarmé retrucou: "Mas Degas", disse rindo, "não são com idéias que se fazem poemas, são com palavras!". Mesmo na prosa, idéias, filosofias, histórias não constroem um grande livro - muito menos o transformam em um clássico. O que se vê nos livros não é um imperativo moral, ou ensinamentos, ou filosofias: os grandes livros, os livros permanentes, nos mostram a força pura e bruta do humano, em suas dúvidas, idiossincrasias, brutalidades, invenções, fraquezas, vilanias, heroísmos, rebeldia... tudo que fomos, somos e podemos ser emerge de páginas fantásticas da literatura mundial. E páginas e páginas continuam a ser produzidas simplesmente porque a aventura humana não se esgotou, e não se esgotará. Os grandes criminosos de Dostoievski, os arrivistas de Balzac ou os vilões de Shakespeare não são modelos de comportamento, mas são modelos de alma: as profundezas e recônditos da mente humana. O Satanás de Milton é um exemplo de força, determinação e beleza, mesmo que seja também o arquétipo do mal - o Mefistófeles de Goethe no final é sobrepujado tanto em inventividade como em vilania por Fausto, mas este, cheio de facetas e sutilezas próprias da raça, consegue ainda redenção, mesmo com ajuda de outra pessoa. O que nos encanta nessas páginas é a beleza de sua construção, utilizando enredos e situações como cimento e a alma humana como os tijolos dessas obras belíssimas. Um trecho do Gibbons:

"Possuía uma biblioteca de 35.000 exemplares e 60 concubinas; e pelo número de filhos e obras que deixou após si, tanto uns quanto outras eram objeto antes de uso que de ostentação."

Certamente o sujeito não é um modelo de comportamento, mas a prosa do Gibbon sim.

17 de set. de 2009

Italo Calvino: Sobre Plínio, o Velho

No livro Por que ler os clássicos, Italo Calvino dedica um capítulo a Plínio, o Velho (23 a 79 d.c.) – nesse caso, “o Velho” serve para distingui-lo do sobrinho, Plínio – o Jovem, que seguiu os passos do tio e se tornou também uma espécie de cientista. Melhor dizendo, tornaram-se homens de ciência, no sentido de que acreditavam que tudo podia ser explicado, tinha uma causa e uma regularidade derivada das leis de funcionamento da natureza. Plínio, o Velho, era um compilador compulsivo, que deixou em sua Naturalis Historia, em 37 volumes, um retrato do conhecimento dos antigos e das suas crenças, erros, lendas, todos convivendo lado a lado como expressões da verdade da época – diz Calvino: “O uso que sempre se fez de Plínio, penso eu, foi o de consulta, tanto para saber o que os antigos conheciam ou acreditavam conhecer sobre determinado argumento quanto para compilar curiosidades e disparates”. Mas para os estudiosos do conhecimento humano é um marco de outra espécie: depois dessa época e durante dezesseis séculos, o conhecimento científico ocidental praticamente estancou, quase não se produzindo nada digno de nota, a despeito dos grandes progressos técnicos medievais.
.....A leitura de Plínio (e não achei o livro em português - só excertos, citações... tem na internet em inglês, espanhol e latim, os livros completos) não traz nenhum proveito científico, por assim dizer, mas a delícia de ver os limites do conhecimento antigo e a falta de limites da imaginação dos antigos – as coisas que eles viam eram incríveis: se um cometa passasse pela “partes pudendas” de uma constelação, isso era visto como prenúncio de uma época de dissolução dos costumes! Essa e outras superstições são citadas e refutadas por Plínio, que no entanto deixa passar um sem número delas como expressão absoluta (e absurda) da verdade. Os sumários dos capítulos já dão uma boa idéia do “método” dele: "Peixes que têm uma pedrinha na cabeça; Pedras que caem do céu; Coisas que não são atingidas por raios; Peixes que sentem a influência dos astros; Preços extraordinários pagos por certos peixes; Planta que nasce de uma lágrima; Planta cuja semente é pintada para que nasçam flores coloridas; Transmutações de sexo e de gêmeos; Que flores eram conhecidas no tempo da Guerra de Tróia; Da quantidade de ouro possuída pelos antigos; Da ordem eqüestre e do direito de usar anéis de ouro; Inimizade entre elefantes e dragões”...

Calvino prossegue:

.....(...) Plínio se sente autorizado a lançar-se em sua famosa resenha das características "prodigiosas e incríveis" de certos povos do além-mar, que terá tanto sucesso na Idade Média e também mais tarde, e transformará a geografia num circo de fenômenos vivos. (Os ecos serão prolongados também nos relatos das viagens verdadeiras, como as de Marco Polo.) Que os territórios desconhecidos na fronteira da Terra alojem seres na fronteira do humano não deve causar espanto: os arimaspos com um olho só no meio da testa, que disputam as minas de ouro com os grifos; os habitantes das florestas de Abarimon, que correm velozmente com os pés virados ao contrário; os andróginos de Nasamona, que alternam os sexos quando se acasalam; os tibios, que num olho têm duas pupilas e no outro, a figura de um cavalo. Mas o grande Barnum apresenta seus números mais espetaculares na Índia, onde pode ser encontrada uma população de caçadores com cabeça de cachorro; e uma outra de saltadores com uma perna só, que, para descansar na sombra, se deitam erguendo o único pé como um chapéu de praia; e outra ainda de nômades com pernas em forma de serpente; e os astomos sem boca, que vivem cheirando perfumes. 

.....O final desse capítulo, entretanto, resume bem e de uma maneira belíssima a motivação de ler não só este mas praticamente qualquer livro, de línguas vivas ou mortas, pois aqui o que nos é dado a ver é

a natureza como aquilo que é externo ao homem mas que não se distingue daquilo que é mais intrínseco à sua mente, o alfabeto dos sonhos, a chave que decifra a imaginação, sem a qual não se produz razão nem pensamento.


* Download do capítulo do Por que ler os clássicos sobre Plínio aqui

16 de set. de 2009

Novos Papuas

Na Segunda Guerra os americanos fizeram algumas bases na Nova Guiné, para reabastecimento de aviões durante a campanha do Pacífico. E lá haviam esses Papuas, com modo de vida remontando à idade da pedra e sem contato com outros povos (ia botar "povos civilizados" mas a miserável da consciência politicamente correta não deixou). Pois observando os americanos em suas bases, ficaram admirados com o poder mágico deles - afinal, invocavam esses "grandes pássaros" com frequência e facilidade. E resolveram imitá-los: construíram equipamentos de rádio, praticamente perfeitos, esculpidos em madeira e pedra, e tentavam, sem sucesso, imitar os gestos e sons da língua estranha para invocar eles próprios os aviões.
A quase anedota parece risível, mas aqui o governador do Tocatins quer construir uma réplica em tamanho natural da Torre Eiffel - e o sentido não é muito diferente da invocação dos papuas. Quem sabe imitando os aspectos externos de uma cultura nós consigamos alguma transmutação, alguma transformação mágica que nos faça mais "civilizados"... O governador age como um bom botocudo brasileiro, mas merece cidadania papua - o sinal externo tomado pela coisa em sim, e a coisa em si tomada pelo que representa, no caso, o que ele deve considerar uma "civilização superior". Ou não: talvez, como um papua honorário, queira simplesmente atrair "pássaros grandes" apinhados de turistas, num torto jeitinho brasileiro. Merece não uma medalha mas uma clava e uma caverna pra passar seus dias sem tentar mágicas bestas.