17 de ago. de 2009

Começos

Topei esses dias com duas "ferramentas para escritores": um "começador" de textos e um "acendedor" de idéias. Explico: dentro daquela idéia tão americana de criar bugigangas para todos os tipos de serviços (já vi um aparelhinho que apita na hora de colocar o pé na escada rolante pra não arriscar um tropeço), dois sites oferecem ajuda aos escritores em dificuldades - um, o "The Story Starter", começa o texto com uma frase aleatória, de um suposto banco de frases com mais de 370 milhões delas. Sai coisas engraçadas como "O desleixado ganhador do prêmio cantou uma canção de ninar para o caçador no supermercado", ou "o padeiro ganancioso serviu café num túnel estreito para o médico"! Imagino o tipo de escritor que segue essas idéias... Bão, serviria teoricamente para superar o terror da página em branco, que acomete tanta gente. O outro tem um nome digno do Casseta e Planeta e suas bugigangas Tabajara: The Imagination Prompt Generator, ou um gerador de idéias, ativador de imaginação, sei lá. Idéias sugeridas: "Se você pudesse inventar algo, o que seria?", "Por que você faz o que faz?", e por aí vai...
Ri um bocado até começar a lembrar dos começos de livros, e tive a curiosidade de abrir alguns deles - quase todos começam ou de maneira pomposa ou completamente comum: "Era uma quarta feira...", "A noite baixava sobre a cidade", essas coisas. Guerra e Paz começa com um diálogo, direto. Um dos meus preferidos, o Declínio do Gibbon, começa assim:

"No segundo século da era cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo respeito e disciplinada bravura."

Entretanto, dois começos para mim são insuperáveis:

"– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... "
Grande Sertão, claro. E outro, que está entre os melhores que já vi, do Calvino:

"SOB AS MURALHAS VERMELHAS DE PARIS perfilava-se o exército da França. Carlos Magno ia passar em revista os paladinos. Encontravam-se ali havia mais de três horas; fazia calor, era uma tarde de começo de verão, meio encoberta, nebulosa; quem usava armadura fervia como se estivesse em panelas em fogo baixo. É provável que, naquela fila imóvel de cavaleiros, alguém já houvesse perdido os sentidos ou cochilasse, mas a armadura os mantinha empertigados na sela de modo uniforme. De repente, três agudos de corneta: as plumas dos penachos agitaram-se pelo ar parado como depois de uma rajada de vento, e logo silenciou aquela espécie de rumor do mar que se ouvira até então, e era, deu para sentir, um ressoar das gargantas metálicas dos elmos. Finalmente, vislumbraram-no avançando lá do fundo, Carlos Magno, num cavalo que parecia maior que o natural, com a barba no peito, as mãos no arção da sela. Reina e guerreia, guerreia e reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido, desde a última vez que aqueles guerreiros o tinham visto.

Parava o cavalo diante de cada oficial e virava-se para examiná-lo de alto a baixo.
— E quem é você, paladino da França?
— Salomon da Bretanha, sire! — respondia o militar a plenos pulmões, erguendo a viseira e mostrando o rosto afogueado; e acrescentava alguma informação prática, do tipo: — Cinco mil cavaleiros, três mil e quinhentos soldados de infantaria, mil e oitocentos ajudantes, cinco anos de campanhas.
— Mão firme com os bretões, paladino! — dizia Carlos, e, toc-toc, toc-toc, aproximava-se de outro chefe-de-esquadrão.
(...)
— E você? — O rei chegara à frente de um cavaleiro com a armadura toda branca; só uma tirinha negra fazia a volta pelas bordas; no mais era alva, bem conservada, sem um risco, bem-acabada em todas as juntas, encimada no elmo por um penacho de sabe-se lá que raça de galo oriental, cambiante em cada nuance do arco-íris. No escudo, exibia-se um brasão entre duas fímbrias de um amplo manto drapejado, e dentro do manto abriam-se outros dois panejamentos tendo no meio um brasão menor, que continha mais um brasão amantado ainda menor. Com desenho sempre mais delicado representava-se uma seqüência de mantos que se entreabriam um dentro do outro, e no meio devia estar sabe-se lá o quê, mas não se conseguia discernir, tão miúdo se tornava o desenho. — E você aí, que se mantém tão limpo... — disse Carlos Magno, que, quanto mais durava a guerra, menos respeito pela limpeza encontrava nos paladinos.
— Eu sou — a voz emergia metálica do interior do elmo fechado, como se fosse não uma garganta mas a própria chapa da armadura a vibrar, e com um leve eco — Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez!
— Aaah... — fez Carlos Magno, e do lábio inferior, alongado para a frente, escapou-lhe também um pequeno silvo, como quem diz: "Se tivesse de lembrar o nome de todos estaria frito!". Mas logo franziu as sobrancelhas. — E por que não levanta a celada e mostra o rosto?
O cavaleiro não fez nenhum gesto; sua direita enluvada com uma manopla férrea e bem encaixada cerrou-se mais ainda ao arção da sela, enquanto o outro braço, que regia o escudo, pareceu ser sacudido por um arrepio.
— Falo com o senhor, ei, paladino! — insistiu Carlos Magno. — Como é que não mostra o rosto para o seu rei?
A voz saiu límpida da barbela.
— Porque não existo, sire.
— Faltava esta! — exclamou o imperador. — Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe! Deixe-nos ver melhor.
Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.
— Ora, ora! Cada uma que se vê! — disse Carlos Magno. — E como é que está servindo, se não existe?
— Com força de vontade — respondeu Agilulfo — e fé em nossa santa causa!
— Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!"

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