4 de jul. de 2015

Maioridade penal e as raízes do mal, com o perdão da rima



A discussão fora de lugar que confronta maioridade com impunidade é, desde sempre, simplista, mitificadora e maniqueísta. Não se quer impunidade; o que se discute é a melhor maneira de entender, educar, integrar, trazer de volta. E nesse "trazer de volta" está a raiz do mal: na maior parte das vezes, esses assassinos, estupradores e ladrões fazem parte da margem de um mundo, o nosso mundo, que nós mandamos que respeitem de longe, que não perturbem, mas cujos benefícios não os atingem - trazer de volta é uma tautologia porque essas pessoas nunca estiveram "aqui".
A culpa objetiva, o ato em si, essas pessoas carregam: as motivações, impulsos, as forças ocultas, carregamos todos nós. "O homem é um animal enredado em uma teia de significados que ele próprio teceu", Geertz relendo Weber.
Não somos ou nos imaginamos uma sociedade de justiceiros, guerreiros monstruosos, carrascos ou sádicos; mas como negar que, ao condenarmos milhões à irrelevância, ao sofrimento, à falta completa de estrutura, de esperança - de justiça - estamos empurrando essas pessoas ao limite, à margem, e as estamos expulsando da mesma sociedade cujas regras queremos que elas obedeçam e cuja desobediência queremos punir com gosto de sangue na boca?
A prisão, a pena, são medidas reintegradoras. Parece uma piada dizer isso no Brasil, mas o que está por trás da doutrina é isso: "pague-se a dívida" com a sociedade, repare o erro. Uma espécie de batismo cristão com duração prolongada: lave-se os pecados, reerga-se cidadão, tábula rasa. Ok, não funciona assim. Voltamos à parte da sociedade que manda respeitar de longe porque senão...
Isso, sobre a ideia em geral do vigiar e punir, do conformar-se o todo às regras da sociedade. Agora, as crianças: há realmente lógica em punir alguém que mal entende as raízes do mal que comete? Alguém cujos impulsos não foram refreados, cujos apetites não foram educados, cujo sofrimento e angústia jamais tiveram explicação ou consideração? Acuados, sofrendo, sem limites ou regras, opõem-se à sociedade opressora que lhes manda passar fome ou necessidade ou sofrimento - ou mesmo angústia, insatisfação - da maneira que podem. Sem nada a lhes refrear, vão até os limites naturais pela sobrevivência, que são aqueles mesmos da barbárie.
Ao reconhecer nesses nossos filhos somente o bárbaro marginal e a barbárie, sem reconhecer neles o nosso reflexo, pecamos e falhamos, com eles, conosco, com nosso futuro. Perdemos a chance de reconhecer neles o retrato de Dorian Gray, que é o nosso retrato, nossos atos, nossas escolhas, nossas opressões. Perdemos a chance de estender a mão e educar, ensinar, integrar.
E estamos perdendo a batalha porque devemos, para ter sucesso, trazer essas pessoas de volta. E não há para onde voltar, porque destruímos o passado, o presente e o futuro delas. Antes e ao lado do educá-las, temos que nos educar e nos reintegrar como humanos, civilizados, ter um lugar conjunto para onde possamos voltar, todos nós. Senão, melhor que se armem, os pequenos e grandes marginalizados, menores e maiores, e tomem de assalto uma sociedade que não é para eles, como uma cidadela de privilégios e injustiças. E que caia essa nossa Bastilha hipócrita.

26 de ago. de 2014

42, not out!


A antiga alquimia via algo de mágico nesses quadrados onde, independente da direção, todas as somas se igualam.


Aniversário sempre é um momento meio mágico, pra mim, contido nesse frase roubada do Stephen Fry, dessa vez "42, not out". Continuamos. Às vezes só viver é que é pleno, sendo descrever esse viver o "desvario laborioso e empobrecedor", do Borges, para quem, aliás, a invenção de Deus superava qualquer outra invenção da história da literatura. Assim também com as vidas humanas, essa incrível multiplicidade de caminhos & destinos, pensamentos, desejos, frustrações... lindo, isso.

1.

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


2


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



A impermanência e seu oposto, que não é a infinitude, mas a plenitude, se encontram no fim, Ouroboros devorando a própria cauda, como os antigos indianos sabiam bem.


Termino com um roubo e uma pergunta, cada vez mais retórica, na voz de Mestre Caeiro:

 "Fiquei atónito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. Caeiro protestou.


«Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?»


E eu, desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?»


«Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso conceber qualquer coisa como infinito?»


«Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»


«Por quê?», disse o meu mestre Caeiro.


Fiquei num terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»


«Se acaba, depois não há nada», respondeu.


Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos.


«Mas V. concebe isso?», deixei cair por fim.


«se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra cousa qualquer, e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»


Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.


«Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número - 42, por exemplo. para além dele temos 43, 44, 45, 46, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior...»


«Mas isso são só números», protestou o meu mestre Caeiro.
e depois acrescentou, olhando com uma formidável infância:

- O que é o 42 na Realidade?"

16 de fev. de 2014

A morte do meu pai

     John Donne escreveu certa vez, em uma de suas meditações: "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Mesmo se apenas um mínimo torrão for lançado ao mar, a Europa ficará diminuída, como se aquele torrão fosse uma montanha, como se fosse a casa dos seus amigos ou a sua própria; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. Por isso, não me pergunte por quem os sinos dobram: eles dobram por ti."
     No dia 29 de janeiro dobraram, inelutavelmente, copiosamente, terrivelmente, por mim; meu pai se foi. Atravessou a cortina das realidades e tornou-se, ele próprio, parte da Terra que tanto amou; venceu-o a indesejada das gentes, faltaram-lhe as forças para continuar lutando - a imagem dos velhos guerreiros espanhóis que deveriam ser enterrados de pé, por não cederem nunca na batalha. Por tantos anos esteve entre a vida e a morte, por tantos anos sofreu - sofremos - por parecer que, finalmente, a batalha cessaria, e por tantas vezes e por tantos anos você ressurgiu, meu pai, que comecei a acreditar que venceria todas as contendas com a Velha da Foice. Ao invés de preparar-me para o inevitável, ao invés de aceitar que você, como todos nós, inevitavelmente se aproximava do mar, que você descansaria dessas fadigas, essas suas vitórias me acostumaram à sua permanência. Sinto hoje imensamente a sua falta.
     Você, papai, foi um dos grandes homens que conheci: um espartano, um que, sendo do sul de Minas, fez-se sertanejo (antes-de-tudo-um-forte), fez-se dos Geraes, um bravo, um dos que Diógenes não se negaria a iluminar com sua lanterna e reconhecer como sendo um homem verdadeiro. Como um homem verdadeiro, você tinha suas arestas, meu pai, suas "filosofias de vida", que, por anos, me enlouqueceram: somente estóicos ou lacônios conseguiriam te seguir. Com você, li pela primeira vez Marcus Aurelius, Zenon, Confúcio: todos respiravam o mesmo ar rarefeito das conquistas que você almejava como homem. Sem, que eu saiba, nunca ter lido Nietzsche, você abraçava com vigor a filosofia do alemão: torne-se quem você é. Vezes sem conta ouvi de você que "o Geraldão lá da frente" estava ficando distante e que você tinha que correr atrás dele; "o Geraldão lá da frente" era, sempre, uma espécie de além-do-homem, alguém que você admirava, alguém que você não tinha dúvidas de que você se tornaria, pois você nunca pensou em não alcançá-lo: a sua falta de modéstia era tão cândida que era em si própria uma virtude.
     Essas virtudes duras muitas vezes nos afastaram: certa vez concordamos, minha irmã e eu, que em sua lápide repousaria perfeitamente um poema do Bandeira, quase como se feito por encomenda:

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-os pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
     Então veio a doença, que o prostrou, que o deixou lutando pela vida a cada momento; e que ao mesmo tempo deixava de lado o cacto e mostrava a face dos carinhos e preocupações por nós que sempre existiram (porque a gente sabia que você era chorão, no fundo; nem todas as armaduras e pedras do sertão impediriam de ver que você se emocionava, muito, às vezes meio escondido, às vezes inteiramente). No início, e durante muito tempo, você chorava quando eu telefonava. Às vezes, me olhava com olhos quase infantis, com um carinho desmedido, aceitando finalmente abraços e emoções, tão alheios ao antigo jeito de ser da sua filosofia de vida. E sempre, agora já sem as forças de outrora, ria, imitando a risada outrora estrondosa, escandalosa, que se ouvia a quilômetros de distância.
     Porque sua risada ficará, meu pai, papai, entre tantas outras coisas... os meus romanos diziam que o que você faz na vida ecoa na eternidade: sua vida ecoará na minha, irá reverberar nos meus filhos, terá seus frutos e sons, terá suas memórias e dias, terá seus ditos e risos. Você agora faz parte da Terra, papai; aos poucos irá fazer parte dessas árvores e folhas, dos bichos e pássaros, e com a mesma força que existiu entre nós existirá para sempre nos seus Geraes, no seu norte, na sua terra natal. Que os Geraes aprendam com você a risada estrondosa e a alegria imensa de viver, e colora com novas tintas as nossas terras de ferocidades excepcionais.
     Quando meu coração parar de sangrar e eu puder parar de chorar tão copiosamente quanto agora, papai, meu pai, irei em um daqueles lugares dos Geraes que percorremos tantas vezes juntos e escolherei uma estrela para ser você. Vou colocar a mão na terra, Tellus, Gaia, o Sertão, os Sertões, e sentir você pulsar, e rir suas risadas, e vou deitar-me olhando aquele céu que amamos, ambos. Olharei com um amor infinito aquela estrela, papai, pois te amei infinitamente, te amo, te amarei - seu Geraldo, Geraldão, Barão das Ibiturunas, Geraldo do Calaboca, TA, papai. Descanse, meu pai, que você alcançou o seu Geraldo lá da frente. Descansem juntos, o homem e sua filosofia de vida - uma vida vivida plenamente, da qual me orgulho de ter participado e de ter vivido para ver, sentir, amar, pensar, rir, chorar. Fique em paz, meu pai: a vida foi sua por direito de conquista, assim também seu descanso.

16 de jan. de 2014

Sobre os “rolezinhos"...

                Um trecho de Yourcenar: "o momento em que os bárbaros do exterior e os escravos do interior se lançarão sobre um mundo que lhes mandam respeitar de longe, ou servir como inferiores, mas cujos benefícios não são para eles". Um imperador romano refletindo sobre a decadência de seu império por "falta de generosidade"...

                Os que são contra têm apenas medo ou se sentem como um império em decadência, uma elite ameaçada por quem ela manda respeitar de longe seu sistema de valores e quase-castas , a quem obriga a servir como domésticos, a quem acusa de "preguiçosos" por receberem "bolsas-esmola" do governo, a quem nega uma vida digna e a repartição justa e equânime do pão-nosso-de-cada-dia? 

                Que venham os bárbaros, os nômades, e invadam logo esses espaços que pertencem a todos. Tem que chegar logo esse momento de que fala Yourcenar - um mundo que se deve respeitar de longe, mas cujos benefícios são para poucos é um mundo que merece ser invadido. Não é só filosofia que deve ser feita a golpes de martelo.

Leia Borges!

                "O homem é a medida de todas as coisas" – o dito de Protágoras indica e implica o protagonismo do papel humano até o modernismo. Hoje diríamos que não o homem, mas a linguagem é que é a medida de todas as coisas. Pelo menos segundo os pós-modernos, e, mais especificamente e especialmente, Jorge Luis Borges. A sua prosa está cheia de uma espécie de cosmogonia do absurdo: o universo enquanto construto humano, inerentemente caótico, tendo ocasionais lapsos de regularidade. A dicotomia quase esquizofrênica entre sentido, percepção sensorial da realidade e a lógica do pensamento racional; entre ciência, linguagem e realidade.

                O universo borgiano se fragmenta em múltiplas realidades, em espelhos, labirintos e no que eu chamo de "tocas de coelho" – pequenos fragmentos de texto que representam uma espécie de buraco negro espaço-temporal, que distorce e engole a lógica regular, o tempo ou a percepção do tempo. Esse universo é caótico porque sem sentido, mas não é sem ordem, mesmo que essa ordem venha de uma regularidade pontual. Ao contrário de ser uma nêmesis do pensamento ocidental e sua busca constante do racionalismo, representa mais uma faceta, que ouso dizer pretende-se última, desse mesmo pensamento. Borges nunca ataca suas tradições, antes as utiliza na construção e desconstrução das mesmas suposições, teorias e pensamentos que as formaram. Mas se não chega a ser um pensamento antagônico ao modernismo e sua paternidade iluminista, é com certeza um caminho alternativo.

                As ficções borgianas indicam um universo onde o sentido advém unicamente de uma atribuição pessoal – as suas construções demonstram que a realidade percebida é uma farsa. Entretanto, demonstram também que todo o universo, toda a realidade, é em si uma farsa, pois depende da significação do participante para ter sentido e obtém validação unicamente dessa fonte. Ao explorar essa concepção em suas obras, Borges se utiliza de algumas técnicas:

1)      Concepção do universo: Borges fala sobre a realidade em vários de seus contos, e explicita sua cosmogonia particular diretamente ou através de alegorias – contos como A Biblioteca de Babel, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Pierre Menard, autor do Quixote, etc.

2)      Tocas de coelho ou buracos negros: fragmentos de texto onde a realidade e/ou a lógica e o espaço tempo se curvam e se turvam. Dom Quixote lendo sobre Dom Quixote; na noite 602 de As mil e uma noites; o mapa da Inglaterra de Josiah Royce; a enciclopédia chinesa d'O Idioma Analítico de John Wilkins, dentre outros.

3)      As citações e notas de pé de página "fabricadas", isto é, inventadas e falsas, mas que não só estão em pé de igualdade com as referências reais como as explicam, dialogam com autores reais, se superpõem e se sobrepõem à realidade, como a nos desafiar a dizer qual delas está mais de acordo com a realidade – para depois nos apresentarem realidades alternativas.

                Pessoalmente, gostaria de ter lido Borges numa época sem internet: essas técnicas de construção de universos paralelos funcionavam muito melhor numa época em que o leitor só tinha acesso ao próprio corpo de conhecimento ou a uma biblioteca próxima. Se for ler Borges, leia como se estivesse sozinho numa ilha: o que é real e o que é imaginário? O que é crível e "inteligente" somente por ter sido (supostamente) dito ou escrito por uma "autoridade"? Borges balança os alicerces de crenças e dogmas num labirinto de erudição e cultura às vezes falsa, às vezes lúdica, mas sempre de um modo imensamente interessante. Comece a ler Borges. Já. Mas obedecendo a um ótimo conselho do próprio Borges: "El verbo leer, como el verbo amar y el verbo soñar, no soporta "el modo imperativo". Yo siempre les aconsejé a mis estudiantes que si un libro los aburre lo dejen; que no lo lean porque es famoso, que no lean un libro porque es moderno, que no lean un libro porque es antiguo. La lectura debe ser una de las formas de la felicidad y no se puede obligar a nadie a ser feliz".