16 de nov. de 2009

Adriano

Vou encher um pouco o saco de todos com a próxima seqüência de posts: gregos! Estou fazendo dois cursos atualmente, um chamado Mestres do Pensamento Grego e outro chamado No Excuses: Existentialism and the Meaning of Life (Sem desculpas: Existencialismo e o sentido da Vida). Os dois são interessantíssimos, e resolvi fazê-los paralelamente, de modo que o início do pensamento humano, que se debruça sobre si próprio e dá origem ao que hoje é a civilização ocidental, fique lado a lado com a experiência de repensar essa mesma civilização e seus caminhos e descaminhos, o que nos tornamos, o que nos torna incompletos, o que nos torna mais ou menos humanos, trazido até de modo bastante amargo pelos existencialistas... tem sido uma experiência reveladora.
Mas esse post era só para incluir uns trechos do livro Memórias de Adriano, que acho veio a calhar: Adriano, imperador romano, era chamado de "o estudante grego", pelo seu amor pela filosofia e civilização gregas. Com ele, dá-se um fenômeno de renascimento do império, transformando o seu reinado e os dois seguintes, com sucessores por ele escolhidos, no que o Gibbon descreve como "o único período da história da humanidade em que a felicidade de um grande povo era o único objetivo do governo" - o que não é pouca coisa. Mas além das extraordinárias realizações desse imperador que era ao mesmo tempo artista, arquiteto, poeta, engenheiro, músico, místico e aventureiro, ainda temos a sua escolha de seus dois sucessores: Antonino Pio, exemplo de dedicação e retidão, e Marco Aurélio, o "rei filósofo" platônico, que tem méritos filosóficos próprios. Desde o antecessor de Adriano, Trajano, o princípio de escolha dos sucessores foi não a hereditariedade mas o mérito: o melhor homem é o próximo a governar o império. Justamente o filosófico Marco deixa essa máxima de lado, escolhe o filho como sucessor e mergulha o império num banho de sangue devido à incompetência e sede de poder do indigno sucessor. Mas Adriano marca também uma tentativa de repensar a civilização e seus caminhos, de refrear alguns ímpetos e desenvolver outros, de contruir novas idéias, de pensar o humano voltando aos gregos, adaptando-os - algo que só volta a ser tentado, de forma laica, pelo menos, uns 15 séculos depois dele.
Alguns trechos do livro:

"Antes de mim, já alguns homens haviam percorrido a terra: Pitágoras, Platão, uma dúzia de sábios e bom número de aventureiros. Pela primeira vez, o viajante era, ao mesmo tempo, o senhor com plena liberdade de ver, reformar e criar. Era a minha oportunidade, e compreendi que talvez tivessem de decorrer séculos antes que se reproduzisse esse feliz acordo entre um cargo, um temperamento e um mundo. Foi então que me apercebi da vantagem de ser um homem novo e um homem só, muito pouco casado, sem filhos, praticamente sem ancestrais, Ulisses sem outra Ítaca além da interior. Devo fazer aqui uma confissão que nunca fiz a ninguém: jamais experimentei o sentimento de pertencer completamente a qualquer lugar, nem mesmo à minha Atenas bem-amada, sequer a Roma. Estrangeiro em toda parte, mesmo assim não me sentia particularmente isolado em lugar algum."

"Plotinópolis, Andrinopla, Antinoé, Adrianótera... Multipliquei o máximo possível essas colméias de abelha humana. O bombeiro e o pedreiro, o engenheiro e o arquiteto presidem a esses nascimentos de cidades; a operação exige também certos dons de feiticeiro. Num mundo em que mais da metade é ocupada ainda pelas florestas, pelo deserto e pelas planícies incultas, constitui belo espetáculo contemplar uma rua pavimentada, um templo dedicado seja a que deus for, balneários e latrinas públicos, a loja onde o barbeiro discute com os clientes as notícias de Roma, a tenda do pasteleiro, do negociante de sandálias, talvez uma livraria, a tabuleta de um médico, um teatro onde se representa de tempos em tempos uma peça de Terêncio... Os exigentes lamentam a uniformidade das nossas cidades. Sofrem por encontrar em toda parte a mesma estátua do imperador e os mesmos aquedutos. Não têm razão: a beleza de Nímes difere da de Aries. Mas a própria uniformidade reencontrada em três continentes alegra o viajante como a de um marco miliário. As mais comuns das nossas cidades possuem ainda seu prestígio tranqüilizador da muda, da posta ou do abrigo. A cidade: a moldura, a construção humana, monótona se quiserem — mas como são monótonos os favos de cera carregados de mel, o lugar dos contatos e das trocas, o ponto onde os camponeses vêm vender seus produtos, retardando-se para admirar, boquiabertos, as pinturas de um pórtico... Minhas cidades nasciam de reencontros: a minha, com um recanto de terra, a dos meus planos de imperador, com os incidentes de minha vida de homem."

"Poucos meses depois da grande crise, tive a alegria de ver formar-se de novo às margens do Orontes a fila das caravanas. Os oásis repovoavam-se de comerciantes que comentavam as notícias ao clarão das fogueiras onde preparavam sua comida. Ao recarregarem cada manhã suas mercadorias destinadas aos países desconhecidos, levavam consigo certo número de pensamentos, de palavras e de costumes nossos, que pouco a pouco se apoderariam do globo terrestre mais facilmente do que legiões em marcha. A circulação do ouro e o trânsito das idéias, tão sutil como o ar vital nas artérias, recomeçavam no interior do grande corpo do mundo. O pulso da terra voltava a bater."

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