14 de out. de 2009

Jorge Luis Borges

Tenho uma certa antipatia por Borges. Ele me transmite uma aura de velhice, como se tivesse sido sempre aquele velho encarquilhado, com a poeira de mil bibliotecas sobre os ombros. Parece aqueles personagens do Nelson Rodrigues, que já nasciam de suspensórios e bengala, segurando um monóculo: e nem é a impressão de antiguidade de uma pirâmide ou coluna grega, é de casa abandonada.
......Certa vez, Garcia Lorca estava visitando a Argentina (estou contando o caso de orelhada), e ficou incomodado com a pretensiosidade e arrogância intelectual de Borges. Começou então a contar um caso quando Borges estava perto, sobre um personagem que ele, Lorca, considerava como a síntese das virtudes e defeitos do Novo Continente, um personagem seminal da imaginação criativa das Américas, etc. Borges não se agüentou de curiosidade, se aproximou e acabou perguntando quem era o tal personagem. "Mickey Mouse", respondeu Lorca gargalhando, para, segundo ele, ver Borges se afastar indignado "arrastando seu manto de erudição e sabedoria". Acho que é essa a impressão: Borges arrasta um manto pesado de erudição, sempre.
......Mas que imaginação criativa, que cadeia de referências, que labirinto de imagens! Tece caminhos e trilhas entre passado e presente, enreda a imaginação do leitor e constrói um arcabouço de citações e personagens que fascinam e mesmerizam como nenhum outro. Borges constrói edifícios que talvez entendamos como sendo construídos na localização errada, meio deslocados, mas que são, inegavelmente, estupendos.
......Em um dos contos do Aleph (O Imortal), um tribuno romano parte em busca da imortalidade. Encontra a Cidade dos Imortais, habitada pelo que parecem ser trogloditas sem conhecimento da palavra falada. Borges faz do conto um trampolim para discutir a memória, a experiência humana, a duração e interação do tempo, espaço, palavra, ser:

(...)
A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe.

(...) (vem a chuva)
...a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.

Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: "Argos, cão de Ulisses". E depois, também sem olhar-me: "Este cão atirado no esterco".

Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.

"Muito pouco", disse. "Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei."

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