1 de out. de 2009

Belau dos Dois Capões

Narciso Durães, salinense da Matrona, poeta e literato, autor de vários livros que estão entre a melhor produção recente da região (e não só), escreve abaixo num contraponto ao post anterior sobre a (boa) poesia provençal, tão antiga e tão contemporânea:


Caríssimo, já percebeu que não consigo responder diretamente para seu blog, não sei porquê. Então vai por e-mail um fragmento do Auto de Belau dos Dois Capões, repentista norte mineiro que encantava os sertões com seus versos até ser assassinado num sábado de feira numa corruptela da Serra do Espinhaço e que se apresentava assim:

Eu não descendo de espermatozóide assustado
nem desci do céu numa tipóia de cegonha
vi a luz quando o orangotango meu antepassado
se apercebeu entre a verdade e a vergonha.


Não confundo louva-a-deus com pai de cobra
mas pretendo reencarnar num urutu alado
sair por ai feito um jararacuçu desembestado
pelos cafundós do Vale do Jequitinhonha!

Encantava o mundo com versos dessa natureza:

Um dia Dulcinéa mostrou a Dom Quixote
as almanjarras do moinho girando nas idéias
e no redemoinho rodopiavam cordeiros e alcatéias
feito a rodilha da serpente em seu bote.


Cervantes não misturava medusas e medéias
nem Dante se imaginava o sumo sacerdote
ando ambananado feito oropas sem colméias
mas sei em que ponto do repente entra o mote.


Peitava os coronéis com estrofes magníficas:

Eu me posiciono sem estardalhaços
repartindo espaços com baobás e querubins
ventos que varrem caparaós e espinhaços
levarão o pó dessa carcaça a Deus por mim.


Então a gazela tirará vingança do mastim
e o dragão fará São Jorge em estilhaços
certas vitórias se parecem com fracassos
certos abraços são afagos de judas e caim!


Já em outro plano psicografou o verso que encerra sua trajetória:

Tive a existência abreviada pela mão facista
de um cangaceiro chucro, traiçoeiro e louco
o meio do inferno pr´esse fi de rapariga é pouco
eu quero vê-lo nos assombros da penumbra cardecista.


Breve e pura e doce feito mel é a alma repentista
a do jagunço, ao contrário, amarga mais do que quitoco
e mesmo na sombra de uma tumba desencarnado e brôco
o desgraçado de acusava: cocaleiro, poeta e marxista!


Pois é, como se nota, a valentia de um menestrel provoca mais estragos que muita bravata de general por aí.
Abraços.

Narciso Durães

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