Antes de comentar a morte do Lévi-Strauss, transcrevo dois textos abaixo, como forma de repensar ou pensar a antropologia - um campo de estudo que está ao mesmo tempo próximo de mim pelo interesse e objetos de estudo e distante, a anos-luz, pelo meu conhecimento sobre a matéria, que só tangenciei, poucas vezes, e usualmente em trajetória inversa e conflitante. Ao ler os textos, entretanto, vou descobrindo que, se o estranhamento continua, as direções das trajetórias já não são opostas. O trecho inicial de um artigo do Eduardo Viveiros de Castro, um dos antropólogos nacionais de maior renome, onde ele faz uma brincadeira com o significado restrito e restritivo que a etnologia adquiriu por aqui, ao mesmo tempo em que os próprios etnólogos se erguiam na torre de marfim da pureza semi-religiosa da ciência, e entrevista dele com o Lévi-Strauss, nos anos 90.
"Sou um etnólogo, isto é, aquela espécie de antropólogo social que se interessa por sociedades simples, de tradição cultural não-ocidental etc. Na academia brasileira, isto significa que sou um "especialista em índio". Tal acepção de "etnólogo" é arbitrária; estou seguindo uma tendência que existe no meio cientifico local (e consagrada nas classificações do CNPq); em outros países, a palavra tem outras conotações. Os antropólogos que estudam sociedades indígenas são hoje uma minoria dentro da disciplina no Brasil; eles, sobretudo os que estudam coisas como parentesco, ritual ou cosmologia, são vistos por seus colegas como praticando um oficio bizarro, um pouco antiquado, simbolicamente importante mas demasiado técnico e, no fundo, irrelevante. Em troca, é possível que nos concebamos como a aristocracia da disciplina, descendentes em linha direta dos heróis fundadores - como uma espécie de brâmanes da religião antropológica, escolhidos pelo ordálio do trabalho de campo junto a primitivos autênticos, perdidos no coração da selva. Estudamos sociedades que, se não são "complexas", são completas; aprendemos línguas e costumes exóticos; tratamos de assuntos como xamanismo, aliança matrilateral, metades exogâmicas, ritos funerários, canibalismo; administramos, em suma, aqueles sacra apresentados aos noviços antes que enveredem, majoritariamente, pelas sendas profanas da antropologia em sentido lato. Para nós, as antropologias urbanas e rurais são etnologizações do alheio, obra de aventureiros que invadiram com nossa bandeira os domínios dos burgos vizinhos. Nós etnólogos continuamos morando na cidade velha da antropologia."
Entrevista (trecho):
Viveiros de Castro
Em geral, o senhor crê que a etnologia faz uma grande volta ao passado?
Lévi -Strauss
Não, eu me dirigia aos Temps Modernes, em particular. Creio que há coisas que não ousamos mais dizer, e que é preciso dizer, ou em breve não se compreenderá mais coisa alguma. É preciso afinal dizer que a antropologia é uma disciplina que nasceu no século XIX; ela é a obra de uma civilização, a nossa, que possuía uma superioridade técnica esmagadora sobre todas as outras, e que, ciente de que ia dominá-las e transformá-las completamente, disse a si mesma: é urgente que se registre tudo que pode ser registrado, antes que isso aconteça. É isso a antropologia; ela não é outra coisa: ela é a obra de uma sociedade sobre outras sociedades. E quando nos dizem que essas sociedades não são diferentes da nossa, que elas têm a mesma história que a nossa etc., esta não é absolutamente a questão. O que pedíamos a essas sociedades que estudávamos é que elas não nos devessem nada: que elas representassem experiências humanas completamente independentes da nossa. À parte isso, elas podem ter todas as histórias que se queira, mas essa não é a questão. Devem-nos elas o que são, ou não? Se elas nos devem, elas nos interessam moderadamente; se elas não nos devem, elas nos interessam apaixonadamente.
Viveiros de Castro
Nesse caso, à medida que começam a nos dever muito, elas nos interessariam cada vez menos?
Lévi-Strauss
Elas se tornam objeto de outras pesquisas, de outras disciplinas. Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas não significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a nossa se enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a trilhar o mesmo caminho que a nossa – isso é como as notas em um sistema dodecafônico, elas não têm mais um fundamento absoluto, elas existem apenas umas em relação às outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a música serial é diferente da música tonal.
Viveiros de Castro
Então o senhor não acredita no fim da antropologia, mas em uma mutação?
Lévi-Strauss
De fato, não acredito, e por vários motivos. O primeiro é que há ainda algumas possibilidades, como você mesmo demonstrou com os Araweté, Descola com os Jívaro... Nem tudo está acabado; vai acabar logo, mas enfim... não está completamente acabado. Em segundo lugar, há ainda, em toda parte, uma quantidade de coisas a rebuscar, coisas que foram, digamos assim, negligenciadas, e que se pode recolher, que é preciso recolher. O terceiro motivo, é que esses povos mesmos vão em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas próprias culturas, e assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela será algo interessante, e importante. Então, nem tudo está acabado; isto posto, a velha concepção de antropologia está morta.
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