31 de out. de 2008

As cidades invisíveis

       Os lábios comprimidos contra o tubo de âmbar do cachimbo, a barba esmagada pela gargantilha de ametista, os dedões do pé nervosamente dobrados dentro dos chinelos de seda, Kublai Khan ouvia os relatórios de Marco Polo sem se mover. Era uma daquelas noites em que um vapor hipocondríaco premia o seu coração.
      - As suas cidades não existem, Talvez nunca tenham existido, Certamente não existirão nunca mais, Por que enganar-se com essas fábulas consolatórías? Sei perfeitamente que o meu império apodrece como um cadáver no pântano, que contagia tanto os corvos que o bicam quanto os bambus que crescem adubados por seu corpo em decomposição, Por que você não me fala disso? Por que mentir para o imperador dos tártaros, estrangeiro?
      Polo reiterava o mau humor do soberano,
      - Sim, o império está doente e, o que é pior, procura habituar-se às suas doenças. O propósito das minhas explorações é o seguinte: perscrutando os vestígios de felicidade que ainda se entrevêem, posso medir o grau de penúria. Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes.
      Outras vezes, o Khan era acometido por sobressaltos de euforia. Ficava de pé sobre as almofadas, media com longas passadas os tapetes estendidos sobre os canteiros, debruçava-se nos balaústres dos terraços para abranger com os olhos deslumbrados a extensão dos jardins do palácio real iluminados por lanternas penduradas nos cedros.
      - Todavia - dizia -, sei que o meu império é feito com a matéria dos cristais, e agrega as suas moléculas seguindo um desenho perfeito. Em meio à ebulição dos elementos, toma corpo um diamante esplêndido e duríssimo, uma imensa montanha lapidada e transparente. Por que as suas impressões de viagem se detêm em aparências ilusórias e não colhem esse processo irredutível?       Por que perder tempo com melancolias não-essenciais? Por que esconder do imperador a grandeza de seu destino?
      E Marco:
      - Ao passo que mediante o seu gesto as cidades erguem muralhas perfeitas, eu recolho as cinzas das outras cidades possíveis que desaparecem para ceder-lhe o lugar e que agora não poderão ser nem reconstruídas nem recordadas. Somente conhecendo o resíduo da infelicidade que nenhuma pedra preciosa conseguirá ressarcir é que se pode computar o número exato de quilates que o diamante final deve conter, para não exceder o cálculo do projeto inicial.


Esse livro do Calvino, As Cidades Invisíveis, é ao mesmo tempo um exercício imagístico e filosófico: Marco Polo, tornado embaixador pelo Grande Khan, Kublai, vem a este com histórias das cidades do seu império, para entretê-lo; entretanto, não são cidades reais, são as almas das cidades, cidades (im)possíveis, cidades-pessoas, cidades-almas... um livro de uma poesia singela, e de imagens fantásticas.

Um comentário:

Webmaster loading... disse...

Eu acho este a cara de Apolo ;)