Noel Nutels foi um judeu ucraniano que veio para o Brasil ainda criança; aqui tornou-se médico, sanitarista e indigenista. Junto com os irmãos Vilas Boas, participou da Marcha para o Oeste, foi um dos primeiros a documentar a cultura indígena e ter com esta uma posição humanista, mais que simplesmente paternalista. Na época da ditatura, já respeitado no Brasil e no exterior, recebe no leito de morte a visita do Alto Comando do Exército, pelos serviços prestados à pátria, etc. Ao seu lado, no leito de morte, os poderosos generais lhe perguntam: - "Então, Nutels, como está?" Ao que ele junta suas forças, se empertiga e responde: - "Igual ao Brasil, na merda e cercado de general!" Não se renderia.
Nesses últimos dias, aqui em Salinas, tenho sentido um conflito crescente entre correntes de pensamento, um embate entre teorias que tive e tenho, uma vontade crescente de fazer como Guevara, que sentia sob os calcanhares as costelas de Rocinante. Ao contrário dele e da maioria dos teólogos comunistas, desconfio demais de qualquer salvacionismo - concordo com o Mencken quando diz que ninguém nunca perdeu dinheiro apostando contra a decência humana. Não por qualquer inferência de inteligências superiores ou guias geniais dos povos: acho simplesmente que toda pessoa, em sua plena capacidade e razão, tende a lutar primeiro pela sua sobrevivência, depois pelo seu conforto, o conforto e segurança de sua prole, e por aí vai... e pra fazer isso é capaz das maiores barbaridades. A natureza, entretanto, é educável; a sociedade se organiza de forma a que todos sobrevivam, esses "contratos sociais" que assistimos por aí. O que acontece há milênios é que um grupo forte se propaga, os fortes, os espertos e os maus prosperam mais - não por serem mais capazes ou melhores, mas por serem mais egoístas. Só uma sociedade onde haja completa transparência terá capacidade para se organizar de forma menos imperfeita - a educação como construção do ser, o ser como parte consciente de um organismo social. E provavelmente mesmo essa utopia vai naufragar na primeira onda de fome que houver nessa sociedade... Vargas Vila, outro autor semi-esquecido, dizia: A civilização é obra dos mais fortes, dos mais maus, isto é, dos homens superiores. Que resta aos fracos e aos bons? Resignar-se a ela ou perecer sob ela. Entre a selva e a corrente, optam pela corrente. E formam essa multidão de servos que fazem a delícia de seus senhores e a vergonha da história: os povos civilizados.
Entrelinhas, entremontes
Há um ano
Nenhum comentário:
Postar um comentário