11 de set. de 2009

Um livro que não escreverei

Minha loucura, outros que a tomem
com o que nela ia,
que é do homem sem a loucura,
mais que besta vazia,
cadáver adiado que procria?
Fernando Pessoa

Um dia, o poeta João Cabral de Melo Neto acorda, sai meio sonâmbulo por Recife até encontrar e comprar um cavalo, um pangaré velho e gasto, um gibão de couro e uma faca. Deixa de lado as roupas urbanas, de diplomata, de poeta consagrado, e parte rumo ao sertão. Antes consegue uma haste longa de bambu, afia a ponta, coloca um chapéu de couro como se fosse um elmo, acrescentando-lhe penas. Vai se encontrar com um andarilho vestido como um penitente, que traz um cajado e uma certeza - só a imortalidade salva.
Aqui as coisas se complicam - como explicar que o penitente é Unamuno? Pois tem que ser ele, que é ele quem inspira esses devaneios. Unamuno é um filósofo, poeta e escritor espanhol, mas tão conhecido por lá quanto é completamente desconhecido por aqui. Dizia que a verdadeira igreja espanhola era a do Nosso Senhor Dom Quixote... mas vamos pular isso - é ele, e pronto. A intenção será colocá-lo a dialogar com a prosa seca de João - um gongórico espanhol, que sempre que leio imagino com os braços abertos e em movimento constante, histriônico como Nelson Rodrigues, ou às vezes com as mãos postas em oração e compungido como um franciscano, e o cético, sintético e cerebral poeta brasileiro.
Os dois percorreriam o Nordeste com seus carnaúbais, suas caatingas, seus engenhos - o nordeste recôndito, os sertões que até pouco tempo atrás diferiam muito pouco em pobreza e calamidades da época do próprio Dom espanhol. Um nordeste que tinha como concorrente da Bíblia em popularidade as histórias do livro "Carlos Magno e os doze pares de França", histórias justamente de cavalaria, que seriam adotadas e incorporadas por tantos e tantos cordéis desde então.
Mas iriam os dois a vagar juntos - a loucura não tiraria a prosa seca, cortante, mínima, concisa, do agora Dom João. E a sanidade não tiraria (como nunca tirou) a vontade de atacar moinhos de Unamuno...
Pensando bem, quem sabe um dia... mas por enquanto esses dois vão ser meus "monstros semióticos", viverão nas páginas desse blog, somente, aparecendo para assombrar e desassombrar-me, de quando em vez.

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