No ano que vem
vou fazer um check-up,
reformar os meus ternos,
vou trocar os meus móveis,
viajar no inverno,
como convém.
No ano que vem
vou me fantasiar,
desfilar na avenida,
decorar samba enredo,
vou mudar minha vida,
como convém.
No ano que vem
faço vestibular,
vou tocar clarineta,
aprender dançar valsa,
fox-trot ou salsa,
como convém.
E vou me converter
no ano que vem,
registrar a escritura,
vou pagar a promessa
e andar mais depressa.
Como convém.
No ano que vem
vou tratar dos meus dentes,
visitar uns parentes,
vou limpar o porão,
vou casar na igreja,
como convém.
No ano que vem
vou soltar busca-pé,
empinar papagaio,
vou comer manga-espada
e sentar na calçada,
até.
No ano que vem
vou pagar minhas dívidas,
apagar minhas dúvidas
e trocar o meu carro
e largar o cigarro.
Como convém.
No ano que vem
vou fazer um regime,
e vou mudar de time,
viajar para a França
e estudar esperanto.
Como convém.
Vou plantar uma rosa
no ano que vem
e escrever um romance
e fazer exercício,
desde o início,
como convém.
E entrar pra política
e me candidatar,
no ano que vem,
fazer revolução,
lutar na Nicaragua,
por que não?
E fazer uma plástica,
no ano que vem
e ficar destemido,
decorar um poema
e escrever pra você,
como convém.
Se não der certo, no entanto,
neste ano que vem,
vou deixar de cobrança
do que fiz ou não fiz.
Neste ano que vem
quero, como convém,
ser, apenas, feliz.
* Poema de Sérgio Antunes
30 de dez. de 2008
Promessas para o Ano
26 de dez. de 2008
24 de dez. de 2008
Divagações
Estou relendo o Paidéia, do Werner Jaeger: da primeira vez me perdi muito, pulei pedaços, me confundi um pouco. Ao mesmo tempo, estou passando para o Youtube O Povo Brasileiro, série de programas baseado no livro do Darcy Ribeiro. Não foi consciente, mas escolhi duas obras quase paralelas: o nascimento de um povo, do Darcy, e o nascimento de um ideal de povo (ou do indivíduo formador do povo), do Jaeger. Achei ótimo comparar esses dois “partos”, principalmente porque ainda trazemos o olhar ocidental, branco, mesmo que tenhamos interiorizado partes do negro e do índio; o modernismo fez a propaganda errada, a antropofagia já tinha sido toda feita, a digestão é que estava complicada. Muito do que somos e que nos diferencia do ideal grego poderia ser aplicado no modernismo se se considerasse a proposta antropofágica uma des-priorização da visão branca ocidental, cristã e latina, substituída pela sagração da visão mestiça resultante da formação do nosso povo. A individualidade e a “pensação” gregas em sua evolução purtuga, agregada aos ritmos, sons, cores, sensações e forças do índio e do negro. Parece um bocado a confusão do Descartes no Catatau do Leminski: distraídos venceremos. Os vídeos são os seguintes (colocando só os hiperlinks; a divisão se deve ao limite de tempo de 10 minutos):
Matriz Tupi - Matriz Tupi A, Matriz Tupi B, Matriz Tupi C
Matriz Afro - Matriz Afro A, Matriz Afro B, Matriz Afro C
Matriz Lusa - Matriz Lusa A, Matriz Lusa B, Matriz Lusa C
Encontros e Desencontros - Encontros e Desencontros A, Encontros e Desencontros B, Encontros e Desencontros C
Brasil Crioulo - Brasil Crioulo A, Brasil Crioulo B, Brasil Crioulo C
Brasil Sertanejo - Brasil Sertanejo A, Brasil Sertanejo B, Brasil Sertanejo C
Brasil Caipira - Brasil Caipira A, Brasil Caipira B, Brasil Caipira C
Brasil Sulino - Brasil Sulino A, Brasil Sulino B, Brasil Sulino C
Brasil Caboclo - Brasil Caboclo A, Brasil Caboclo B, Brasil Caboclo C
Invenção do Brasil - Invenção do Brasil A, Invenção do Brasil B
* Republicado a pedidos - primeira publicação em 09/2007, agora com todos os vídeos
20 de dez. de 2008
Contrapontos II
18 de dez. de 2008
A fascinação do difícil
O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. O fogo esfria
No coração. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos levem
As peças de teatro que se escrevem
Com cinqüenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e de otários,
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente,
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.
The fascination of what's difficult, do Yeats, traduzido por Augusto de Campos, e uma fotografia do Cartier-Bresson, que adoro. Duas idéias: uma, que o poema acima não deixa de ser uma bela carapuça para mim; outra, a idéia original, era usar as montagens do Eisenstein como modelo pra frases, poesias e aforismos lado a lado com pinturas e fotografias... contrapontos. Funcionou? Pra mim a imagem é fantástica, mininim feliz, bunito!, orgulhoso, confiante... e o poeta já cansado, mas ainda querendo "descobrir a cancela e abrir o cadeado".
14 de dez. de 2008
Salinas
... dito isto, é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por elas cancelados.
A origem continua aqui - mas as ruas, pessoas, cores, dias, luares e músicas que compõem minha cidade cada vez mais atravessam a cortina entre realidade e memória, e existem cada vez mais só pra mim. E eu me torno cada vez mais um Ulisses sem outra Ítaca além da interior.
13 de dez. de 2008
Tédio elevado a uma forma artística...
10 de dez. de 2008
Elomar e Pasquim
Meu reino por uma coleção do Pasquim!
Estou lendo o primeiro livro do Elomar Figueira Mello, um dos meus músicos prediletos, um compositor que mistura cultura medieval ibérica, cultura popular sertaneja, música erudita e viola, fazendo uma alquimia que me encanta desde que o conheci. O livro, Sertanílias, foi empréstimo do neto dele, Rodrigo - agora com 8 anos, não chegou ainda à "quadra propícia" para tal leitura, como o avô colocou na dedicatória. Me lembrei então dos primeiros discos (disco mesmo, LP) que consegui comprar do Elomar, raríssimos, e quando, ainda nas Lavras dos idos de 88,o Beto me emprestou um Pasquim com uma entrevista com o Elomar - fiquei deliciado. O pessoal do Pasquim era fantástico, eles faziam essas descobertas de músicos, artistas, escritores, faziam umas entrevistas com a turma toda junta, Henfil, Jaguar, Tárik de Sousa, Millôr, Paulo Francis, tantos outros que passaram por aquele jornal...
Aí deu vontade de ler de novo - sou um leitor tardio do Pasquim, mas ainda cheguei a ser assinante entre 1988 e 1990, já "nos finalmente" do jornal. Ler coisas do Millôr, como a seção Falsa Cultura:
"A mulher de Sócrates, Xantipa, era tão chata que Sócrates vivia nos bares tomando cicuta", ou aforismos fantásticos como esse:
Vício X Virtude:
A virtude é sempre premiada. O vício não precisa.
E os Fradim, do Henfil? Cumprido e Baixim, merecem toda uma seção só de lembranças das risadas que já dei com eles. Abaixo algumas das tirinhas, tem que clicar na imagem para ampliá-las (pra quem veio ainda depois e não conhece, "biografia" dos Fradim aqui - são antípodas, um comprido e bonzim, ingênuo, com uma firme crença na bondade e na graça divina; o outro, sádico, sacana, com uma crença inabalável na falta de decência do ser humano e sempre desafiando as convenções e mesmo Deus):
6 de dez. de 2008
Casos Salinenses - O Engenheiro e o Poeta
Título mais parecido com João Cabral de Melo Neto... na verdade, os dois eram poetas. Só que o Engenheiro, além de poeta, ocupava também um cargo alto numa estatal, tinha progredido bastante na carreira, era uma autoridade em sua área. Mas, em determinado momento, deu vontade da terrinha, vontade de trabalhar por lá, de fazer algo pela terra natal.
Aceitou um cargo menor para poder voltar - só não contava com a política da terra. Chegava nas localidades onde havia projetos da estatal e dizia: "Esta obra aqui foi feita com o dinheiro do povo, não é mais do que obrigação do governo, é direito garantido na constituição! Vocês não devem NADA a qualquer político daqui, os políticos é que têm décadas de atraso pra pagar pra vocês!". E assim, claro, angariou inimigos à esquerda, direita, centro, acima e abaixo: afinal de contas, quem estava e quem não estava no poder dependia dessas obras & feitos pra manter os currais eleitorais, e foi um deus-nos-acuda. O final foi previsível: botaram o homem pra correr. Tinha sido chefão administrativo mas não tinha força política - acabou exilado em outras paragens.
Fizemos uma festa de despedida e desagravo, participaram todos os amigos, a turma de movimentos culturais, direção da estatal, colegas, enfim, foi uma demonstração e tanto de apreço tanto pelo Engenheiro quanto pelo que tentou fazer.
Bão, o que não vai mencionado na história bonita aí de cima é que o dito Engenheiro era também um daqueles sacanas: irônico, irreverente e brincalhão - espírito de menino, talvez o que o tenha feito ter brincado de Dom Quixote.
Estávamos eu, o Poeta, e mais outras pessoas da cidade em uma das mesas, enquanto o Engenheiro estava numa mesa com autoridades, um deputado, um diretor da estatal, enfim, gente graúda. Acho que vislumbrou uma oportunidade e veio, saltitante, até nossa mesa: começou a cochichar algo no ouvido do Poeta, que ia ficando visivelmente vermelho de raiva - e antes que este esboçasse uma reação, vapt!, correu e sentou-se na "mesa dos graúdos", onde o Poeta não poderia retaliar. Ficou lá, com aquele risinho sacana de gente que acabou de aprontar e gostou disso.
O Poeta na mesa, remoendo a impotência, alvo de nossa gozação pelo acontecido, até que, de repente, veio um brilho nos olhos! Levantou-se, despediu-se da gente e foi diretamente à mesa do Engenheiro, despediu-se e disse, com a maior calma, mas alto o bastante pra gente ouvir:
- Meu caro, o negócio está de pé, só estou esperando uma posição sua!
Acho que a turma da mesa dele é que não entendeu porque caímos na gargalhada: o duplo sentido da sacanagem ficava evidente só pra quem sabia que não havia "negócio" nenhum entre eles... e agora era o Engenheiro que não podia retrucar nada pra não entregar a conotação pornô para os companheiros de mesa. Adorei a retaliação.
3 de dez. de 2008
Les Amants
Les Amants é um filme da Jeanne Moreau que não consigo em português de forma nenhuma - o filme, de 1958, passou por aqui nos cinemas nos idos de 1960, mas não saiu em VHS ou DVD, pelo que eu saiba. Consegui a versão original e estou legendando - vai demorar horrores, que "francês em voz alta" definitivamente não é o meu forte. Mas compensa - afinal, é Jeanne Moreau! E além disso, tem esse trecho, uma cena sutil de uma carga erótica fantástica - o rosto de Jeanne Moreau, aqueles olhos de ressaca (não a ressaca de mar, como a nossa Capitu, ressaca mesmo), olhos de mistérios e profundidades, uma boca de deusa grega, vai entrando em êxtase enquanto seu amante desce pelo seu corpo até sumir da tela, deixando a mão crispada no final como uma explosão minimalista de prazer e... desculpa, babei.
A cena:
Luiz Carlos Merten:
"Em 1958, ela fez Ascensor para o Cadafalso, de Louis Malle, e o filme é considerado um dos marcos da revolução da nouvelle vague, o movimento de renovação do cinema francês que, como uma onda, terminou por atingir as praias cinematográficas de todo o mundo. No mesmo ano, Jeanne e Malle filmaram Os Amantes e a famosa cena de sexo oral - o rosto dela em êxtase, enquanto o amante vai descendo por seu corpo até desaparecer da imagem - provocou escândalo na época."
Ruy Castro:
"Para o público, seu personagem era ela mesma: a mulher inteligente, madura e independente. Mas os diretores sabiam que aquela era apenas uma de suas facetas como atriz e que Jeanne era capaz de fazer qualquer papel. E os íntimos garantem que, na vida real, ela sabia também miar, se necessário.
Jeanne Moreau completa hoje 80 anos (*23/01/08), lúcida, firme e na ativa. Como Humphrey Bogart para as mulheres, ela ensinou aos homens que a beleza feminina mais duradoura podia estar nas imperfeições."