26 de jul. de 2010

Livros Velhos

Os acontecimentos narrados aqui são de segunda mão: meu velho amigo está morto há anos. Numa das minhas idas à universidade (levo mais de quarenta minutos até lá, e vou escutando áudio aulas sobre os mais diversos assuntos), ouvi uma palestra sobre a chegada de Cortés ao México e os mitos criados por essa chegada - mitos de que Cortés fora tomado por um Deus (esse parcialmente verdade), outros de que os espanhóis e seus cavalos eram vistos como uma besta só (esse somente uma mentalidade eurocêntrica pode ter inventado, afinal, tirando a cor da pele, não somos tão diferentes assim). A história contada na aula, a história dos livros de história, não é a história de La Malinche, pelo menos não toda a história. Devo a umas manias de meu amigo morto e à perseguição do rei da Espanha aos marranos portugueses o desvendar o segredo de La Malinche - melhor dizendo, o segredo dos sonhos de La Malinche.

***
Cortés obviamente não falava Nahuatl, e somente uma incrível conjunção de fatores permitiu que se comunicasse com os astecas.
Alguns anos antes, Jerónimo de Aguilar tinha naufragado na costa de uma região Maya, e tinha aprendido o dialeto daquelas terras. Homem sangüíneo e vingativo, não tardou a tentar se impor aos povoados que o haviam recebido, tratado dos seus ferimentos e o abrigado. Assumia ares messiânicos, e assim que aprendeu o suficiente da língua e dos costumes, tentou fazer-se passar por um dos deuses daquele povo, exigindo ouro, honrarias e riquezas. Sua paranóia não tinha limites: vendo seu próprio naufrágio como um desígnio divino, indignava-se com a indiferença dos nativos às suas exigências e demandas, tornando-se rancoroso, violento, inconvivível. Os nativos, por sua vez, usavam de certa cautela: afinal, era um ser diferente, uma língua estranha, um comportamento chocante. Mais ao norte, entre os astecas, haviam lendas de deuses assim brancos como ele. Não se dobravam às suas exigências absurdas, mas também não tinham coragem de livrar-se dele, até que tivessem certeza não tratar-se de algum enviado dos estranhos deuses brancos dos astecas.
La Malinche era filha de nobres astecas - com a morte do pai, foi vendida como escrava e dada como morta - e  vendida para uma região falante do Maya em Yucatán. Como nobre e filha de nobre, entendia bem seu papel e o papel do seu povo; sujeitou-se a essa vilania como a Santa Maria Egipcíaca do Bandeira.
O encontro de Aguillar com La Malinche permitiu a Cortés um modo eficaz, embora lento, de se comunicar com Montezuma. O que ele não contava é que seus dois intérpretes tivessem agendas próprias: para falar com os astecas, ele tinha que falar em espanhol para Aguillar, que traduzia para o Maya, que La Malinche então traduzia para o Nahuatl. As intenções de Cortés eram duplamente deturpadas: Aguillar, com sua sede de sangue e poder, queria a destruição completa daqueles povos que acreditava terem sido enviados para puni-lo e castigá-lo, e agora queria vingança. Traduzia as frases de Cortés da maneira mais ofensiva possível, xingava os deuses, fazia exigências absurdas, denegria os interlocutores - queria causar uma guerra, queria exterminar os selvagens, os responsáveis por sua desgraça. La Malinche era uma nobre asteca; além disso, não via no rosto de Cortés nada da ira ou desejo de sangue das palavras que eram ditas. Adivinhou que a cobiça de Cortés estava sendo usada para os propósitos do homem horrendo que era a sua boca. Esse homem era só metade da sua boca: ela era a outra metade. Assim, os insultos se transformaram em ponderações, os xingamentos em elogios, as ofensas se amainavam, ela tentava abrandar e diminuir as exigências, a tornar mais suportável o jugo. Aguillar tomava as reações por pusilanimidade e covardia, e escalava os ataques: La Malinche explicava que era um possuído pelos deuses da ira, um louco tocado pelos céus, e que no final o grande general branco concordava com ela. Foi capaz de manter esse delicado equilíbrio por um tempo, meses até. O que Cortés dizia era aumentado e pervertido por Aguillar, e então diminuído e abrandado por La Malinche, de modo que a fala de Cortés acabava traduzida de modo quase perfeito. Aos poucos, La Malinche aprendeu o suficiente de espanhol para mostrar a Cortés as indignidades de Aguillar. Cortés pôs Aguillar a ferros, e esse, sob tortura, confessou todos os malefícios, mentiras e deturpações que perpretara. Seu depoimento, mesmo sob tortura, revela o demônio tomado de ira e vingança, o monstro sedento de sangue em que se transformara. Foi enviado para se tornar frade e expiar seus pecados. O navio em  que os autos de seu interrogatório seguiam para a Espanha foi tomado pelo São Gabriel, de bandeira portuguesa, e este, por sua vez, foi abordado por um corsário inglês, fazendo com que tal depoimento encontre-se atualmente no Museu Britânico. Pude ver esses autos por um favor especial de Sir Stephen, amigo de longa data: um amontoado de sonhos sanguinários misturados com penitências e visões apocalípticas. Parece que Aguillar acreditava ou chegou a acreditar que aqueles povos era os últimos remanescentes do Éden, e que ao fazer Cortés destruí-los provocaria a ira divina e o fim dos tempos. Forçaria assim o Juízo Final e a salvação última dos povos... Um louco, enfim, que por vias tortas e pela simples cobiça dos homens, conseguiu seu intento.
Livre de Aguillar, La Malinche acreditou poder dar a seu povo uma chance - aproximou-se de Cortés; tornou-se indispensável a ele. A cobiça e a sede de ouro que havia adivinhado nos primeiros contatos estava lá, ainda mais dura, ainda maior - Cortés não mais queria somente ouro, queria um império. La Malinche tinha visto povos se submetendo a outros, pagando tributos aos mais fortes - fora assim com seu próprio povo, tinha sido sempre assim. Achou que esses novos "deuses brancos", que ela sabia não serem deuses e alguns serem menos que humanos, contentariam-se com tributos e homenagens do império dos seus. Mas não: aquele brilho nos olhos de Cortés indicava que a febre dos deuses da destruição já não o deixaria. Suas terras, seus povos, seus costumes, séculos de história, deuses - tudo cederia diante do conquistador. Cortés chegara a dizer que, depois de Deus, devia a conquista da Nova Espanha a Doña Marina - até seu próprio nome perdera. Sua maldição por ter se aliado a tal pessoa fora maior do que jamais imaginara: tinha se transformado no agente da destruição do seu povo.
Por um momento desesperou-se: então, com a calma que vem das profecias realizadas, entregou-se a Cortés e lhe deu filhos; esses filhos seriam o México, seriam ensinados como seus antepassados, manteriam suas crenças e costumes, misturados com os de Cortés. Seriam um com os conquistadores, mas não seriam conquistadores nem conquistados - seriam um novo povo, um povo que carregaria consigo a memória de uma civilização morta. Enquanto estivesse viva a memória da civilização, estaria ainda viva, mesmo que tênue, a própria civilização, seu próprio povo. Começou a escrever um extenso tratado sobre todas as tradições, deuses, comidas, caminhos, festas, remédios... queria recuperar na sua prole o império perdido. Sabia que o império sobrevive mais de memórias que de monumentos. Queria toda a história do seu povo contada de geração em geração, por seus filhos e os filhos destes, como uma espécie de sociedade secreta subterrânea, que persistisse na veia do império espanhol. Seu filho mais novo morreu de malária e seu filho mais velho brincava com as armaduras espanholas aos doze anos. Entrou para a Armada aos 16, tornou-se capitão e nunca mais sequer entendeu Nahuatl. La Malinche morreu aos poucos, de tristeza. Sua copiosa obra foi tomada em uma incursão de Drake, em 1577, e foi vendida junto com outras quinquilharias para um judeu português de Amsterdã, da Casa Pinto. Este ajudou a minha família a fugir de Portugal quando do domínio espanhol, por volta de 1640, e enviou junto parte dos seus tesouros, incluindo esse "códice Malinche". Pertence aos arquivos do meu amigo morto, e lá está, largado, empoeirado. Com sua morte já se vão as provas das peripécias e caminhos percorridos pelo códice, assim como suas interpretações, as tentativas cuidadosas de tradução que levou décadas fazendo. Tudo inútil, um esforço quixotesco de reviver através de palavras e memórias os desejos de um império extinto. Nem mesmo um império: reviver os gritos desesperados e escritos daquela que foi algoz de um império e mãe de outro, sem querer ser nem uma coisa nem outra. Mas nada adianta: o códice já quase se desmancha - ilegível, misturando um mal espanhol com uma invenção de alfabeto fonético Nahuatl, sobrevive ainda, entretanto, esfarinhando-se aos poucos - a última tentativa de ressuscitar um império, a primeira que conheço através da memória.

Nenhum comentário: