Vejo a briga cada vez mais acirrada pela Presidência da República e fico pensando: qual o fator motivador de tanto desejo, tanta cobiça, raiva, vaidade? Desejo de servir ao público? Nunca. Ninguém luta assim a não ser pela sede desvirtuada e desmedida de poder. Ou por fanatismo, o que não é o caso, a não ser que seja alguma modalidade nova de culto à própria personalidade. Uma vergonha - parecem lobos famintos, hienas, abutres. Deu vontade de fazer um vídeo com imagens interpostas das enchentes, fome, miséria. Mas ficaria localizado: aqui, esses apetites são alimentados às custas de vidas, pessoas morrem de fome, morrem por falta de atendimento médico, milhões têm usurpadas suas chances de uma vida digna. Mas os mesmos apetites flagelam os americanos, que morrem de armas nas mãos defendendo interesses escusos de uma oligarquia envelhecida e encarquilhada.
Escrevi esses dias sobre Cincinatus, o romano que, chamado para salvar a pátria (literalmente), foi investido de todos os poderes, nomeado ditador - e ao invés de ser corrompido pelo poder absoluto, após cumprir sua missão, retirou-se para o seu arado e suas terras, sem nenhum proveito pessoal. Italo Calvino, em seu conto "A Decapitação dos Chefes", faz uma proposta ainda mais tentadora: todos os chefes, depois de cumpridos os seus mandatos, são decapitados. No conto, o fervor cívico e a vontade de cumprir seu papel dão a motivação necessária a essa espécie de sacerdócio suicida. Talvez pudéssemos adaptar a situação para o Brasil, colocando ao invés de decapitação, fuzilamento. E uma loteria para decidir quem faria parte do pelotão. Mas a idéia subjacente ao conto é que somente as motivações puras deveriam ser aceitas - a morte como conseqüência seria uma forma de garantir isso. Sei não, acho que o Calvino subestimou a capacidade intrínseca da canalhice humana e do fanatismo. Mas a intenção é boa.
Eu, por outro lado, faria uma proposta mais tecnológica e mais desesperançada: usaria todas as opções atuais para expor ao máximo cada pessoa que entrasse na política. Todos os seus extratos bancários, contas, telefonemas, tudo, tudo, devia estar na rede em tempo real - até a quarta geração e quinto grau de parentesco, sei lá. Todas as passagens aéres, todas as conversas, tudo. Inventaríamos o "homem de vidro", tão temido, mas a nosso favor. O perigo seria transformar esse "big brother a favor" em um misto de novela mexicana e circo de horrores, e decepcionar-me de vez com a natureza humana. Maluf-ficha-limpa, Sarney e companhia que o digam.
30 de jun. de 2010
Solução Política
28 de jun. de 2010
O atual Rei da França - Eliot e Espelhos
"Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar" - frase inicial do conto de Borges. Há um ano atrás estava fazendo uma ligação entre Unamuno, filósofo, poeta e louco espanhol, com sua "religião" do Nosso Senhor Dom Quixote, e a Paidéia grega - continuo achando fantástica a maneira como Unamuno nega a derrota para uma vida sem sentido: como ele adota o heroísmo aparentemente sem sentido do Dom e o transforma em um "sentido trágico da vida", que lhe dá ao mesmo tempo a alegria de viver e a justificativa estética da existência - a única que conta, segundo Nietzsche. Mas as conjunções entre leituras&viagens&pensamentos me levaram a outros caminhos, não opostos mas diversos. E recomecei a ler Borges, de quem tinha certa birra. Não vou contar aqui como se deu o "enamoramento", mas foi o mesmo sentido inicial que me levou a Unamuno - e uma frase dele, Borges, "as inumeráveis maneiras que os homens conhecem de ser homem", que é a minha busca, meu encantamento com um mundo onde as várias experiências humanas vão tecendo histórias quase fantásticas, os pequenos macacos pelados aos poucos se transformando em demiurgos - e tiranos, e loucos, e assassinos, também.
Em minha procura por entender como funciona essa literatura borgiana, que escapa da realidade e a recria a partir da palavra, encontrei por acaso a tese do T. S. Eliot. Eliot, graduado em filosofia, estudou com parte considerável dos grandes filósofos da sua época, como Santayana, Bertrand Russel e Josiah Royce, além de frequentar Bergson. Eliot abandona a filosofia por considerar, entre outras coisas, que os filósofos não prestam atenção às palavras - e a palavra é o início da realidade para ele. De fato, segundo sua tese, nenhuma teoria pode ser provada falsa, uma vez que se adotem as premissas de quem a propõe. Eliot chega a um relativismo absoluto, onde nenhuma explicação da realidade é falsa, nenhuma teoria é inverdade, pois há sempre maneiras de adotar as premissas propostas (isso, claro e para variar, é uma simplificação).
Na época de Eliot havia um "problema" interessante que ilustra o ponto de vista dele: a frase "o atual Rei da França é careca" fazia parte de uma disputa filosófica de então, e praticamente todo mundo tomava um partido a seu respeito. O problema, que Russel, entre outros, tentava resolver, envolvia uma disputa em torno de proposições lógicas e a proposta, por Russel, de uma teoria da descrição. Discussões arcanas sobre problemas mais: não há rei da França atualmente, então, como ele pode ser careca? Mas a negação da frase, "o atual rei da França não é careca", não pode também ser verdadeira. E a frase não é sem sentido - há um sentido, mas não há correspondente real ao sentido. Eliot, desgostoso com o que ele considerava discussões vazias, não entra no problema em si, mas diz que "the current King of France already is": o atual rei da França já existe, isto é, adquiriu existência própria a partir da palavra.
Esse é o mote e o alicerce de Borges: a linguagem, isto é, as palavras, são não só a interface entre natureza e pensamento, imanentemente descritivas - são criadoras de realidades, não menos verdadeiras que as realidades simplesmente descritas. Uma vez que possa ser imaginada, qualquer realidade é possível. Toda a labiríntica obra do argentino se volta para a criação e multiplicação dessas realidades, esgarçando o tecido da "realidade conhecida" ao multiplicá-lo ad infinitum. Até que, em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, esse tecido começa a ceder...
Sobre o "problema" do careca francês, ver Wikipédia aqui.
Uma breve biografia do Eliot aqui.
17 de jun. de 2010
Bloomsday
Ontem, 16 de junho, fez 106 anos que Leopold Bloom saiu para viver o dia retratado em Ulysses, de James Joyce. Pessoalmente, vejo o Ulysses como a coroação do processo de fragmentação paleomodernista, na linha de Pound e Eliot, por sua vez uma resultante dos embates entre "simbolistas" e "realistas", de Mallarmé a Yeats, na busca de um significado para a literatura, que compõe a Biblioteca, que alguns chamam de Universo... O "discurso modernista" é duo, os neomodernistas tentando "construir do zero" e os paleomodernistas a partir da tradição. O que dá um contraste fantástico e uma nomenclatura esquizofrênica: aqui, a antropofagia seria uma mistura dos dois, mas eu a colocaria na lista dos paleomodernismos, que não é absolutamente tradicional: só constrói a partir dali, como o diálogo erudito, framentário e labiríntico que Joyce faz com a cultura ocidental em Ulysses - não por acaso nomeado a partir da Odisséia. Essas duas linhas se diferenciariam ainda mais na multitude de discursos pós-modernos, mas o grande avatar projetado das entranhas grávidas do paleomodernismo é Jorge Luis Borges - e, por aqui, arriscaria dizer que o Leminski do Catatau e dos haicais se enquadraria nessa linha, com ainda mais força que o Haroldo do Galáxias. Como nos livros do conto borgiano "A Biblioteca de Babel", a literatura vai se compondo de variantes possíveis e completando o projeto de emular o Universo, composto inteiramente de livros que contam todas as histórias da História, reais ou imaginadas ou não, e ainda muito mais. Assim também com os homens: em "Os Tradutores das Mil e Uma Noites", Borges diz de Richard Burton que ele era um "capitão inglês que tinha a paixão da geografia e das inumeráveis maneiras que os homens conhecem de ser homem". Essa multiplicidade de escritas e discursos me encanta exatamente por isso: mostra as inumeráveis, infinitas e belas maneiras que os humanos conhecem de serem humanos e contarem as histórias e fábulas e sonhos da humanidade, e a reinventarem continuamente.
Já quanto aos "gêneros" e "escolas" literárias, nenhum grande escritor se enquadra nelas, apesar de alguns serem quase arquétipos das suas pretensões. Lembram-me a história da Sibila - nesse mito grego, o deus Apolo concede um desejo a Sibila, e ela pede a imortalidade. Esquece-se da propensão ao sadismo (ou da propensão a divertir-se às custas dos humanos) que Apolo repetidamente mostra: ele concede a ela a imortalidade, mas não a juventude eterna. Sibila vive, mas envelhece: mil anos depois, dela só resta a voz. Como os gregos, chineses, provençais e tantos outros, a literatura envelhece, mesmo que imortal - desses grandes do passado restam somente essa voz, mas que às vezes ainda soa retumbante.
16 de jun. de 2010
O Riso
......Aristóteles fazia uma diferenciação entre tragédia e comédia (peças) que, grosso modo, pode ser resumida em dizer que a tragédia escolhe o que representar, o drama, os atos extremos, os acontecimentos e desastres que levam a um final dramático e trágico, e a comédia mostra tudo, tudo - o que, levando o argumento um pouco mais adiante, poderia incluir o silogismo de que toda tragédia tem seus elementos de comédia. Bergson, ao analisar o riso, mostra-o como um componente quase de controle social: ri-se do que está fora do normal, comportamentos inadequados, fora de lugar, de hora, etc. (estou simplificando para meus próprios objetivos escusos). De certa forma, o riso vem sempre de uma percepção de deslocamento entre o que se vê ou se percebe e o que é esperado e normal, seja em atos ou palavras. Um desconcerto, um desacerto, um jogo de palavras... Freud dá vários exemplos que adoro, em seu "O chiste e sua relação com o inconsciente": tal defeito é um dos quatro calcanhares de Aquiles daquela pessoa... como quem tem quatro calcanhares não é uma pessoa, é um animal, o chiste é perfeito. Outro, de mais difícil entendimento atualmente, foi o de uma figura da época (do Freud) afirmar que um tal político fez um grande ato e depois, como Cincinatus, voltou para o seu lugar à frente do arado. Cincinatus, mítico avatar das virtudes romanas, era um cidadão romano que, chamado pela República, a defendeu, comandou exércitos, reformou leis, derrotou inimigos e depois, quietamente, voltou às suas terras, como antes, sem qualquer proveito pessoal que não honrar a pátria. Mas a figura romana voltou para trás do arado, quem fica na frente do arado é o animal!
......Uma minha teoria, que levarei adiante em um conto, é que o Universo é um ser consciente, cujo corpo é composto por toda a matéria existente. Esse ser, gestado numa explosão primordial, é ao mesmo tempo completo e angustiado: não sabe o propósito da própria existência. Assim, subdivide-se em seres conscientes, especulares, miríades de seres senscientes que andam, falam, nascem e morrem, numa tentativa talvez inútil de entender-se a si próprio. Um desses seres - eu - estive em Bonito, no Mato Grosso do Sul, no meio de paisagens exuberantes, cascatas e cachoeiras, pássaros de cores fantásticas, águas de uma transparência incrível, num dos lugares mais belos em que já estive. Mas, como sabia o velho grego, se se incluir toda a história... a temperatura era de uns 10 a 15 graus, bastante frio, e todos os passeios envolviam água. Num dos dias, passeio de bote: com direito a "guerra de balde". Divertidíssimo, principalmente dar baldadas a essa temperatura. Me entusiasmei e dei uma, duas, três baldadas em cheio no "bote inimigo" - na quarta baldada o universo conspirou e fui junto com o maldito do balde, num spláaaaf dentro dágua, e passei o resto do tempo tendo que usar uma pinça para ir ao banheiro. No último dia, flutuação em um dos rios mais transparentes que já vi, com máscara, snorkel, etc. E roupa de neoprene... apertadíssima, justíssima, vesti um pedaço e fomos andando até o rio. No caminho, ao colocar a roupa completa, fiquei um cruzamento de pingüim com castrato italiano: o passo bamboleante e a voz fina - mas tudo pela beleza do lugar. Uns 400 metros depois, consegui ainda articular numa voz fininha pra um dos amigos que foi junto: "Léo, Léo, será que depois dessa a gente ainda consegue reproduzir?!"