24 de mar. de 2010

Imaginação e fantasia

[continuação e conjecturas a respeito do post anterior]


Uma interseção interessante entre o trabalho de Propp sobre a morfologia dos contos maravilhosos e a literatura fantástica dos séculos XIX e XX pode ser encontrada, curiosamente, em Walt Disney. (Depois que escrevi é que percebi a temeridade da afirmação... mas vamos lá.)
Disney adaptou vários contos populares em versões "amaciadas", como Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho e outros - acho que todo mundo viu pelo menos algum desses "clássicos Disney". Não sei se alguém se lembra, entretanto, do Coelho Quincas - que vivia fugindo e enganando os dois brutamontes descerebrados João Honesto (o nome é uma ironia com a raposa mais que larápia) e João Grandão, o urso. Esse conto se baseia em um personagem que tem grande ressonância na cultura afro-americana, mas que não diz nada pra nós - talvez o mais próximo que tenhamos desse personagem seja o Saci, o curupira ou Pedro Malasartes. Brer Rabbit, no original, é um personagem arquetípico da tradição oral afro-americana, baseado em dois animais mitológicos africanos, a aranha Anansi, do povo Ashanti, e Ijapa, uma tartaruga Ioruba. Como esses arquétipos, sofre perseguição de animais maiores, e sempre sai ileso usando sua inteligência superior, sua rapidez de pensamento e, se tudo o mais falhar, sua maior velocidade. (Esses personagens não são incomuns na tradição européia, onde vão desde Pedro Malasartes - Pedro Urdemales - ou mesmo, para ficar num exemplo recente, o personagem em que se baseia a peça Till, do Grupo Galpão).
Bom, Disney adaptou a história para desenho animado, e a curiosidade é que, num determinado momento do primeiro desenho, o arte-finalista esqueceu de desenhar uma cerca sobre um precipício - e o Quincas estava apoiado nessa cerca. Quando passou o desenho, Quincas apareceu então apoiado em pleno ar, desafiando as leis da gravidade... para surpresa e gargalhada geral dos desenhistas. Diz a lenda que foi a partir desse escorregão que perceberam o potencial desafiador do desenho e iniciaram, a partir desse episódio, aquelas circunstâncias fantásticas onde o personagem anda sobre o ar e só cai quando percebe que não há nada debaixo dele - ou só sente dor quando vê que a mão está pegando fogo, e inúmeras outras situações absurdas como essas...

PS: Só para adicionar um tempero mais fantástico - nesse caso, da minha imaginação, puramente - o bispo Berkeley, com seu nominalismo, a ser levado ao pé da letra, permitiria situações assim na nossa realidade. Mas isso já é muita viagem... só pra chatear os filósofos recentes que tentam ressuscitar o bom bispo.

PS 2: Apesar de ter sido recolhido na cultura oral do sul escravagista dos Estados Unidos, a forma tomada pela narrativa escrita - principalmente nas narrativas do "Uncle Remus" de Joel Chandler Harris - é claramente condescendente e racista, como no famigerado Cabana do Pai Tomás (outro "uncle" no original, Uncle's Tom Cabin). A narrativa de Disney não traz isso de maneira perceptível, tentando ficar somente no caráter lúdico-didático das fábulas e contos populares originais.

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