16 de fev. de 2014

A morte do meu pai

     John Donne escreveu certa vez, em uma de suas meditações: "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Mesmo se apenas um mínimo torrão for lançado ao mar, a Europa ficará diminuída, como se aquele torrão fosse uma montanha, como se fosse a casa dos seus amigos ou a sua própria; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. Por isso, não me pergunte por quem os sinos dobram: eles dobram por ti."
     No dia 29 de janeiro dobraram, inelutavelmente, copiosamente, terrivelmente, por mim; meu pai se foi. Atravessou a cortina das realidades e tornou-se, ele próprio, parte da Terra que tanto amou; venceu-o a indesejada das gentes, faltaram-lhe as forças para continuar lutando - a imagem dos velhos guerreiros espanhóis que deveriam ser enterrados de pé, por não cederem nunca na batalha. Por tantos anos esteve entre a vida e a morte, por tantos anos sofreu - sofremos - por parecer que, finalmente, a batalha cessaria, e por tantas vezes e por tantos anos você ressurgiu, meu pai, que comecei a acreditar que venceria todas as contendas com a Velha da Foice. Ao invés de preparar-me para o inevitável, ao invés de aceitar que você, como todos nós, inevitavelmente se aproximava do mar, que você descansaria dessas fadigas, essas suas vitórias me acostumaram à sua permanência. Sinto hoje imensamente a sua falta.
     Você, papai, foi um dos grandes homens que conheci: um espartano, um que, sendo do sul de Minas, fez-se sertanejo (antes-de-tudo-um-forte), fez-se dos Geraes, um bravo, um dos que Diógenes não se negaria a iluminar com sua lanterna e reconhecer como sendo um homem verdadeiro. Como um homem verdadeiro, você tinha suas arestas, meu pai, suas "filosofias de vida", que, por anos, me enlouqueceram: somente estóicos ou lacônios conseguiriam te seguir. Com você, li pela primeira vez Marcus Aurelius, Zenon, Confúcio: todos respiravam o mesmo ar rarefeito das conquistas que você almejava como homem. Sem, que eu saiba, nunca ter lido Nietzsche, você abraçava com vigor a filosofia do alemão: torne-se quem você é. Vezes sem conta ouvi de você que "o Geraldão lá da frente" estava ficando distante e que você tinha que correr atrás dele; "o Geraldão lá da frente" era, sempre, uma espécie de além-do-homem, alguém que você admirava, alguém que você não tinha dúvidas de que você se tornaria, pois você nunca pensou em não alcançá-lo: a sua falta de modéstia era tão cândida que era em si própria uma virtude.
     Essas virtudes duras muitas vezes nos afastaram: certa vez concordamos, minha irmã e eu, que em sua lápide repousaria perfeitamente um poema do Bandeira, quase como se feito por encomenda:

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-os pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
     Então veio a doença, que o prostrou, que o deixou lutando pela vida a cada momento; e que ao mesmo tempo deixava de lado o cacto e mostrava a face dos carinhos e preocupações por nós que sempre existiram (porque a gente sabia que você era chorão, no fundo; nem todas as armaduras e pedras do sertão impediriam de ver que você se emocionava, muito, às vezes meio escondido, às vezes inteiramente). No início, e durante muito tempo, você chorava quando eu telefonava. Às vezes, me olhava com olhos quase infantis, com um carinho desmedido, aceitando finalmente abraços e emoções, tão alheios ao antigo jeito de ser da sua filosofia de vida. E sempre, agora já sem as forças de outrora, ria, imitando a risada outrora estrondosa, escandalosa, que se ouvia a quilômetros de distância.
     Porque sua risada ficará, meu pai, papai, entre tantas outras coisas... os meus romanos diziam que o que você faz na vida ecoa na eternidade: sua vida ecoará na minha, irá reverberar nos meus filhos, terá seus frutos e sons, terá suas memórias e dias, terá seus ditos e risos. Você agora faz parte da Terra, papai; aos poucos irá fazer parte dessas árvores e folhas, dos bichos e pássaros, e com a mesma força que existiu entre nós existirá para sempre nos seus Geraes, no seu norte, na sua terra natal. Que os Geraes aprendam com você a risada estrondosa e a alegria imensa de viver, e colora com novas tintas as nossas terras de ferocidades excepcionais.
     Quando meu coração parar de sangrar e eu puder parar de chorar tão copiosamente quanto agora, papai, meu pai, irei em um daqueles lugares dos Geraes que percorremos tantas vezes juntos e escolherei uma estrela para ser você. Vou colocar a mão na terra, Tellus, Gaia, o Sertão, os Sertões, e sentir você pulsar, e rir suas risadas, e vou deitar-me olhando aquele céu que amamos, ambos. Olharei com um amor infinito aquela estrela, papai, pois te amei infinitamente, te amo, te amarei - seu Geraldo, Geraldão, Barão das Ibiturunas, Geraldo do Calaboca, TA, papai. Descanse, meu pai, que você alcançou o seu Geraldo lá da frente. Descansem juntos, o homem e sua filosofia de vida - uma vida vivida plenamente, da qual me orgulho de ter participado e de ter vivido para ver, sentir, amar, pensar, rir, chorar. Fique em paz, meu pai: a vida foi sua por direito de conquista, assim também seu descanso.

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