"O homem é a medida de todas as coisas" – o dito de Protágoras indica e implica o protagonismo do papel humano até o modernismo. Hoje diríamos que não o homem, mas a linguagem é que é a medida de todas as coisas. Pelo menos segundo os pós-modernos, e, mais especificamente e especialmente, Jorge Luis Borges. A sua prosa está cheia de uma espécie de cosmogonia do absurdo: o universo enquanto construto humano, inerentemente caótico, tendo ocasionais lapsos de regularidade. A dicotomia quase esquizofrênica entre sentido, percepção sensorial da realidade e a lógica do pensamento racional; entre ciência, linguagem e realidade.
O universo borgiano se fragmenta em múltiplas realidades, em espelhos, labirintos e no que eu chamo de "tocas de coelho" – pequenos fragmentos de texto que representam uma espécie de buraco negro espaço-temporal, que distorce e engole a lógica regular, o tempo ou a percepção do tempo. Esse universo é caótico porque sem sentido, mas não é sem ordem, mesmo que essa ordem venha de uma regularidade pontual. Ao contrário de ser uma nêmesis do pensamento ocidental e sua busca constante do racionalismo, representa mais uma faceta, que ouso dizer pretende-se última, desse mesmo pensamento. Borges nunca ataca suas tradições, antes as utiliza na construção e desconstrução das mesmas suposições, teorias e pensamentos que as formaram. Mas se não chega a ser um pensamento antagônico ao modernismo e sua paternidade iluminista, é com certeza um caminho alternativo.
As ficções borgianas indicam um universo onde o sentido advém unicamente de uma atribuição pessoal – as suas construções demonstram que a realidade percebida é uma farsa. Entretanto, demonstram também que todo o universo, toda a realidade, é em si uma farsa, pois depende da significação do participante para ter sentido e obtém validação unicamente dessa fonte. Ao explorar essa concepção em suas obras, Borges se utiliza de algumas técnicas:
1) Concepção do universo: Borges fala sobre a realidade em vários de seus contos, e explicita sua cosmogonia particular diretamente ou através de alegorias – contos como A Biblioteca de Babel, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Pierre Menard, autor do Quixote, etc.
2) Tocas de coelho ou buracos negros: fragmentos de texto onde a realidade e/ou a lógica e o espaço tempo se curvam e se turvam. Dom Quixote lendo sobre Dom Quixote; na noite 602 de As mil e uma noites; o mapa da Inglaterra de Josiah Royce; a enciclopédia chinesa d'O Idioma Analítico de John Wilkins, dentre outros.
3) As citações e notas de pé de página "fabricadas", isto é, inventadas e falsas, mas que não só estão em pé de igualdade com as referências reais como as explicam, dialogam com autores reais, se superpõem e se sobrepõem à realidade, como a nos desafiar a dizer qual delas está mais de acordo com a realidade – para depois nos apresentarem realidades alternativas.
Pessoalmente, gostaria de ter lido Borges numa época sem internet: essas técnicas de construção de universos paralelos funcionavam muito melhor numa época em que o leitor só tinha acesso ao próprio corpo de conhecimento ou a uma biblioteca próxima. Se for ler Borges, leia como se estivesse sozinho numa ilha: o que é real e o que é imaginário? O que é crível e "inteligente" somente por ter sido (supostamente) dito ou escrito por uma "autoridade"? Borges balança os alicerces de crenças e dogmas num labirinto de erudição e cultura às vezes falsa, às vezes lúdica, mas sempre de um modo imensamente interessante. Comece a ler Borges. Já. Mas obedecendo a um ótimo conselho do próprio Borges: "El verbo leer, como el verbo amar y el verbo soñar, no soporta "el modo imperativo". Yo siempre les aconsejé a mis estudiantes que si un libro los aburre lo dejen; que no lo lean porque es famoso, que no lean un libro porque es moderno, que no lean un libro porque es antiguo. La lectura debe ser una de las formas de la felicidad y no se puede obligar a nadie a ser feliz".
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