11 de jan. de 2010

O tempora...

O tempora, o mores é uma expressão latina (ah, o tempo, os costumes) usada para reclamar das novas gerações - reclama-se das novas gerações desde que o mundo é mundo: a corrupção dos costumes, a liberalidade, o desrespeito, etc, etc. Platão já reclamava dos estudantes de seu tempo - e certamente algum homem das cavernas já levantava as mãos aos céus e dizia poucas e boas dos meninos que não aprendiam e não tinham boas maneiras... mas não era por aí que eu ia começar.
Fui em dezembro em uma peça do Antônio Abujamra inspirada em Beckett - eu tinha me enganado e fui achando que era do Ibsen. Bão, daí veio o fluxo de pensamento: Ibsen escreveu Casa de Bonecas nos idos de 1880 (a peça é de 1879, mas acho que ele só conseguiu representá-la um pouco mais tarde), onde a esposa se liberta dos grilhões sociais e se declara disposta a lutar para ser feliz como ser humano e não como esposa ou mesmo mulher. Um salto gigantesco para a época, não pude deixar de lembrar que por esse tempo, em Salinas, havia um canibal rondando uma serra próxima e matando os incautos viajantes que por lá se aventuravam. Capturado, declarou preferir a carne das coxas das vítimas, por ser mais adocicada.
Fiquei tentado a fazer um paralelo de contemporaineidade entre Ibsen e o canibal, entre a elevação da percepção das amarras sociais e dos papéis pré-determinados e estratificados de uma sociedade opressiva e opressora, de preconceitos encastelados no organismo social, de uma lado, (mas o primeiro passo para o reconhecimento da igualdade não só dos sexos, mas de etnias, comportamentos sexuais e direitos humanos) e o primitivismo a que retornava o canibal.
Claro que havia uma grande disparidade entre a Europa industrializada e o Brasil agrário de então. Mas a comparação seria injusta: na mesma época, um meu parente construiu um teatro, em Salinas, onde ele podia tocar seu violoncelo e as filhas cantarem árias. Ramiro Ramires de Almeida Lopes, meu tatatataravô, escrevia em francês, que também ensinava. Provável que se escandalizasse com a peça do Ibsen, numa sociedade patriarcal e agrária como a nossa daquele tempo. Mas o canibal estava há léguas de distância (literal e figurativamente) dele e da cultura que representava - mas a distância entre essa cultura e Ibsen, também imensa, só faria aumentar.
Essa cultura brasileira elitizada, importada, alienígena, se cristalizou, se perpetuou e se entranhou na sociedade. Tal cultura sempre foi uma pálida imitação da elite branca européia, tanto paródia quanto pastiche involuntário, pois enquanto Ibsen já representava o que havia de moderno, e durante séculos houvessem lutas de todos os tipos e em todas as frentes pela igualdade e pelos direitos humanos, pela diminuição da desigualdade de renda, pela preservação do meio ambiente e tantas outras, a nossa elite seguiu encastelada, calcificada, estratificada e burra.
Onze anos mais novo que Rimbaud, meio século mais novo que Whitman, vinte anos mais velho que Ezra Pound e vinte e oito mais velho que Maiakóvski, vivendo no tempo de Ibsen, Olavo Bilac punha um monóculo e saía no calor do Rio de Janeiro de fraque.  Dizendo da pátria "de virgens selvas e de oceano largo", dando vazão à idéia do Brasil Grande, paradisíaco, praia e céu de uma elite dissociada do povo, foi o tal "príncipe dos poetas" tupiniquim. Como bom inglês de aquário, tomava seu chá das cinco na Academia - como os outros Imortais, de luvas brancas, segurando a caríssima porcelana importada, com gestos elegantes copiados de viagens ao exterior para ver a pátria-modelo, mesmo proclamando seu amor ao "rude" idioma da pátria-mãe. Realmente, quem tem titica de galinha na cabeça não devia morar em país tropical.
Quod erat demonstrandum.

2 comentários:

debi sarmento disse...

Fico pensando que Sardinha, o bispo, devia ter um gosto muito melhor do que o chá aguado ;)

Max disse...

Chatô sobre o Rui,mas se enquadra: "Rui Barbosa é para mim, que conheço mal os fósseis da língua portuguesa, um dos mais notáveis escritores estrangeiros do nosso atual idioma", escreveu no Correio da Manhã. "Leio-o de dicionário em punho." :)