Semana passada, tive a grata satisfação de assistir a um debate com o Guará – Guaracy Araújo, e reencontrá-lo, aqui em Brasília. Ainda não me acostumei com a cidade, mas o CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil certamente figura entre os lugares preferidos daqui. A ocasião foi uma mostra de filmes árabes, o mesmo evento ocorrendo também em BH. Em determinado momento, Guará falava sobre a (im)propriedade de se falar de um cinema árabe, assim como a generalização "cinema sul americano" pode parecer inapropriada pra gente, dadas as diferenças gigantescas entre os cinemas, por exemplo, argentino, brasileiro e mexicano. E sobre a percepção do outro, do árabe e no árabe, o desconhecimento, a aproximação via cinema – enfim, mundos se (re)conhecendo.
Lembrei-me que, por coincidência, há quase um ano atrás, acho, escrevi o último post desse blog justamente sobre o Islã. O assunto interessa-me por vários motivos – a ascendência e influência do mundo árabe sobre o mundo ibérico – e conseqüentemente a nossa "herança árabe", por assim dizer; o colapso final do império Romano, também sofrendo grande influência árabe; a incrível espiral civilizatória e decadência idem dessa civilização nos campos da ciência e das artes... enfim, é mesmerizante ver como os graves sábios árabes do Al-Andaluz decaíram para os intransigentes mulás fundamentalistas de boa parte do empobrecido mundo árabe de hoje.
O post anterior e a fala do Guará me remeteram, entretanto, para o mesmo "lugar literário": um conto do Borges chamado "A procura de Averróis". É interessante ver as inúmeras camadas de significado repousando sobre os inúmeros "desconhecimentos" do outro – a otredad de Octávio Paz – tanto no conto como no fazer do conto. Borges, argentino, representa como nenhum outro a tradição ocidental. Entretanto, esse mesmo "ocidente" nos trata – brasileiros, argentinos, enfim, o hemisfério sul inteiro – como outsiders. Basta ver as manchetes sobre a Petrobrás ou a Vale, sobre como as empresas "não-ocidentais" estão crescendo, etc. Nos alinham com os BRICs não só por emergentes, mas também por estrangeiros ao mundo-branco-civilizado.
Bão, no conto, Averróis, ou melhor, Abulgualid Muhammad Ibn-Ahmad ibn-Muhámmad ibn-Rushd, está traduzindo Aristóteles. E embatuca em duas palavras, dois conceitos: tragédia e comédia. Aliás, o próprio conceito de teatro lhe era estranho. O texto de Borges, desnecessário para o post, mas é uma compulsão transcrevê-lo:
A pena corria sobre a folha, os argumentos se enlaçavam, irrefutáveis, mas uma leve preocupação empanou a felicidade de Averróis. Não a causava o Tahafut, trabalho fortuito, mas um problema de índole filológica vinculado à obra monumental que o justificaria ante os povos: o comentário sobre Aristóteles. Esse grego, manancial de toda a filosofia, fora outorgado aos homens para ensinar-lhes tudo o que se pode saber; interpretar seus livros como os ulemás interpretam o Alcorão era o árduo propósito de Averróis. Poucas coisas mais belas e mais patéticas registrará a história além dessa consagração de um médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze séculos; às dificuldades intrínsecas devemos acrescentar que Averróis, ignorando o siríaco e o grego, trabalhava sobre a tradução de uma tradução. Na véspera, duas palavras duvidosas o detiveram no princípio da Poética. Essas palavras eram tragédia e comédia. Encontrara-as anos atrás no livro terceiro da Retórica; ninguém, no âmbito do Islã, atinava com o que queriam dizer. Inutilmente fatigara-se nas páginas de Alexandre de Afrodísia, inutilmente compulsara as versões do nestoriano Hun ain ibn-Ishaq e de Abu-Bashar Mata. Essas duas palavras arcanas pululavam no texto da Poética; impossível evitá-las.
Eis que chega um mercador que esteve na China, e viu lá uma apresentação de teatro; entretanto, como não tinha referências a quê compará-lo, desentendeu o teatro e seus conceitos:
– Uma tarde, os mercadores muçulmanos de Sin Kalan me conduziram a uma casa de madeira pintada, na qual viviam muitas pessoas. Não se pode contar como era essa casa, que mais parecia um único quarto, com filas de armários ou sacadas, umas sobre as outras. Nessas cavidades havia gente que comia e bebia, e também no chão, e também num terraço. As pessoas desse terraço tocavam tambor e alaúde, salvo umas quinze ou vinte (com máscaras vermelhas) que rezavam, cantavam e dialogavam. Estavam presas, e ninguém via o cárcere; cavalgavam, mas não se percebia o cavalo; combatiam, mas as espadas eram de cana; morriam e logo estavam de pé.
– Os atos dos loucos – disse Farach – excedem às previsões do homem sensato.
– Não estavam loucos – teve de explicar Abulcásim. – Estavam figurando, disse-me um mercador, uma história.
Ninguém compreendeu, ninguém pareceu querer compreender. Abulcásim, confuso, passou da escutada narração às desajeitadas razões. Falou, ajudando-se com as mãos:
– Imaginemos que alguém mostre uma história, em vez de contá-la. Seja essa história a dos adormecidos de Éfeso. Vemos retirarem-se para a caverna, vemos orarem e dormirem, vemos dormirem com os olhos abertos, vemos crescerem enquanto dormem, vemos despertarem depois de trezentos e nove anos, vemos entregarem ao vendedor uma antiga moeda, vemos despertarem no paraíso, vemos despertarem com o cão. Algo semelhante nos mostraram àquela tarde as pessoas do terraço.
– Essas pessoas falavam? – perguntou Farach.
– Claro que falavam – disse Abulcásim, convertido em apologista de uma cena que mal recordava e que o enfadara bastante. – Falavam e cantavam e peroravam!
– Nesse caso – disse Farach – não eram necessárias vinte pessoas. Um só narrador pode contar qualquer coisa, por complexa que seja.
O texto de Borges brinca com a coincidência, pois mesmo posto frente à solução do enigma – o teatro e as tragédias e comédias que ali seriam representados – Averróis não compreende o sentido ou a resposta contida nos estranhos hábitos chineses.
É o conto de um argentino, mal compreendido cidadão não-ocidental, sobre árabes que não compreendem os conceitos gregos, mesmo expressos em chinês. Uma dança do mútuo desconhecimento, da outridade partida ou nunca inteira, ao mesmo tempo que expressa a universalidade dos conceitos - ou o teatro greco-chinês ou a vontade do saber argentino-andaluz. Uma humanidade partida e desgarrada de si mesma, desconhecendo-se mesmo quando em frente aos espelhos de que Borges gostava tanto. A humanidade encerra em si sertões e labirintos – sábios de Cordisburgo e Buenos Aires o confirmam.