28 de jan. de 2010

Utopia, a ilha e o sonho

CURVA PSICODÉLICA
a mente salta dos trilhos
LÓGICA ARISTOTÉLICA
não legarei aos meus filhos

.......Quando li esse poema do Leminski pela primeira vez foi uma revelação. Quer dizer, não uma revelação, mas uma confirmação de que tinha mais gente no mundo com o mesmo sentimento que eu. Saí de uma cidade pequena, onde tive a sorte de ter acesso a boa literatura - mas somente a clássica, os franceses e russos. Pra quem não viveu ou é de outras gerações - antes da minha!, muito antes - a cultura brasileira foi extremamente francófila, e os russos vinham em traduções diretas das traduções francesas, e tínhamos pouca coisa dos romancistas e ensaístas em língua inglesa ou qualquer outra. E tinha acesso aos brasileiros, claro.
.......Mas se de um lado a literatura a que tinha acesso apontava para uma cansada tradição ocidental, as notícias que chegavam eram mais empolgantes, gente querendo implantar a justiça social, lutar contra os poderosos, desbancar os ávidos banqueiros internacionais e substituir os malvados generais torturadores. Nessa seara tinha inclusive um herói particular, próximo e quase parente, que era o Apolo Heringer, exilado pelos militares, passando pelo Chile, França e escolhendo a Argélia para ainda lutar pelo que acreditava -na época era o que imaginava mais próximo de um cavaleiro andante atualizado, e me amaldiçoava por ter nascido algumas gerações atrasado "para a luta".
      Quando saí para estudar fora, tive vários "choques culturais". O da literatura, quando, ao ler Ezra Pound e os irmãos Campos, tive ganas de jogar quase tudo que tinha lido no lixo e ler tudo de novo e diferente. De lá pra cá tirei vários desses autores da lixeira, mas os que mandavam que a gente respeitasse de longe, as vacas sagradas vazias e pomposas, permaneceram para sempre nessa lata de lixo da história.
.....As experiências totalitárias de engenharia social me desencantaram logo cedo, também - tanto os comunistas quanto os esquerdistas radicais. Ao invés de santos justos, o que mais encontrei foram hipócritas (os melhores) e alguns investidos de uma ira santa para fazer o mundo à sua imagem e semelhança - com eles no comando. Aliás, cada vez mais acho que esses caras defenderiam qualquer  sistema em que eles estivessem à frente, e a ira era muito mais por acharem que alguém estava no lugar que era deles de direito. Nessa seara, o meu "cavaleiro andante particular" foi salvar o Rio das Velhas, trabalhar com o meio ambiente e a sociedade civil, que (interpretação minha) o Apolo já não agüentava o cheiro do ralo. Ele e mais uma legião de desencantados.
.....Sinto falta das utopias - não confundir com a falta de bandeiras. Uma utopia é um sonho, uma idealização. A ilha perfeita que nunca acharemos. Hoje, de novo, nos mandam respeitar de longe as vacas pomposas e sagradas do mercado como se fosse algo tão intricado e difícil que é melhor deixar como está.  Ou ressuscitam os projetos totalitários de controle social, à la Chaves. Fazem da política algo tão incrivelmente sujo e desonroso que fica fora dos limites para qualquer pessoa de bem.
.....Mas não sei se gostaria de viver sem sonhos, sem amar o destino da raça humana. Em nós, humanos, a capacidade de sonhar é talvez a parte mais bela - quando sonhamos mundos, quando amamos, quando queremos o impossível. Desde os gregos esses sonhadores moldaram o mundo - nunca na própria época, mas lançaram sementes. Hoje somos uma planície estéril.
.....Um dos "meus" escritores, Joseph Brodsky (Nobel de literatura de quem nunca li um livro traduzido em português), fazia uma comparação sobre prosa e poesia que pode ser estendida para a vida em geral. Dizia que sempre houve um embate entre os habitantes das cidades e os nômades (na comparação dele, literatura estabelecida e vanguarda), e o habitante da cidade temia o nômade não porque o nômade poderia roubar suas posses, estragar suas colheitas, destruir sua casa, mas porque o nômade destruía a sua idéia de horizonte. Belíssima, essa imagem. Os pequenos macacos pelados em suas múltiplas casinhas e edifícios, esquecidos da centelha divina da utopia e sonhos, circunscritos a um horizonte pobre e estreito, agindo maquinalmente, temerosos dos nômades-bardos com suas sacolas de sonhos e suas histórias de Utopia.
.....Quero mais nômades, mais quixotes, mais loucos de água e estandarte, mais utópicos e sonhadores - mais gente de carne e osso e alma! Que nos destruam continuamente os horizontes, que nos falem de sonhos à noite, olhando as estrelas, que cantem a canção alegre dos profetas milenares sobre dias de justiça e liberdade nas ilhas perdidas...

22 de jan. de 2010

Mentiras

Não era uma música do Caetano que dizia que "o Haiti é aqui"? Os níveis de nossos bolsões de pobreza continuam comparáveis aos de lá. A violência nas nossas favelas só não é comparável porque as nossas ganham das de lá, relativamente "pacificadas" há algum tempo.
Um estudo conduzido em algumas comunidades nordestinas (na década de 70, mas vá lá, não melhorou tanto assim) descobriu que o tal "instinto maternal" achou uma estratégia evolutiva e na região do estudo só se mostrava  depois que a criança atingia determinada idade, tal a taxa de mortalidade infantil - uma forma de preservar emocionalmente a mãe. Vi a reportagem, com uma senhora, os olhos distantes, dizendo "meus filhos são muito morredô"...
As enchentes em Santa Catarina, os deslizamentos no Rio e, agora, a tragédia-mor no Haiti: nesses momentos, pululam heróis. E deve ser assim mesmo, não estou querendo o descaso, não. Mas queria mais.
Um bombeiro entra numa casa em chamas, arrisca a sua vida e salva uma criança. Outro se atira numa correnteza e salva uma senhora do afogamento. Heróis, sim, conhecidos e anônimos. Mas a criança, posta num lar, alimentada dia a dia, cuidada, com carinho, com paciência, amor, isso não chamamos heroísmo. Mas é dele que precisamos - somos muito bons em reagir a situações extremas, mas somos de uma extrema covardia para lidar com situações de longo prazo.
Passamos ao lado de mendigos caídos, de crianças desnutridas, de drogados em suas poças nojentas de vícios - passamos diariamente, nem prestamos atenção mais. Não nos responsabilizamos pelo "estado da nação", não somos culpados pelo sistema, não temos nem queremos voz sobre o destino político, econômico ou social do povo, da nação. Mas se uma enchente ou um terremoto nos atinge, botamos nossas capas e saltamos crateras, salvamos vidas, uma, duas, dez. Voltamos pra casa com o sorriso dos justos. E no dia seguinte passeamos entre os escombros dessa nossa sociedade, indiferentes, condenando gerações.

11 de jan. de 2010

O tempora...

O tempora, o mores é uma expressão latina (ah, o tempo, os costumes) usada para reclamar das novas gerações - reclama-se das novas gerações desde que o mundo é mundo: a corrupção dos costumes, a liberalidade, o desrespeito, etc, etc. Platão já reclamava dos estudantes de seu tempo - e certamente algum homem das cavernas já levantava as mãos aos céus e dizia poucas e boas dos meninos que não aprendiam e não tinham boas maneiras... mas não era por aí que eu ia começar.
Fui em dezembro em uma peça do Antônio Abujamra inspirada em Beckett - eu tinha me enganado e fui achando que era do Ibsen. Bão, daí veio o fluxo de pensamento: Ibsen escreveu Casa de Bonecas nos idos de 1880 (a peça é de 1879, mas acho que ele só conseguiu representá-la um pouco mais tarde), onde a esposa se liberta dos grilhões sociais e se declara disposta a lutar para ser feliz como ser humano e não como esposa ou mesmo mulher. Um salto gigantesco para a época, não pude deixar de lembrar que por esse tempo, em Salinas, havia um canibal rondando uma serra próxima e matando os incautos viajantes que por lá se aventuravam. Capturado, declarou preferir a carne das coxas das vítimas, por ser mais adocicada.
Fiquei tentado a fazer um paralelo de contemporaineidade entre Ibsen e o canibal, entre a elevação da percepção das amarras sociais e dos papéis pré-determinados e estratificados de uma sociedade opressiva e opressora, de preconceitos encastelados no organismo social, de uma lado, (mas o primeiro passo para o reconhecimento da igualdade não só dos sexos, mas de etnias, comportamentos sexuais e direitos humanos) e o primitivismo a que retornava o canibal.
Claro que havia uma grande disparidade entre a Europa industrializada e o Brasil agrário de então. Mas a comparação seria injusta: na mesma época, um meu parente construiu um teatro, em Salinas, onde ele podia tocar seu violoncelo e as filhas cantarem árias. Ramiro Ramires de Almeida Lopes, meu tatatataravô, escrevia em francês, que também ensinava. Provável que se escandalizasse com a peça do Ibsen, numa sociedade patriarcal e agrária como a nossa daquele tempo. Mas o canibal estava há léguas de distância (literal e figurativamente) dele e da cultura que representava - mas a distância entre essa cultura e Ibsen, também imensa, só faria aumentar.
Essa cultura brasileira elitizada, importada, alienígena, se cristalizou, se perpetuou e se entranhou na sociedade. Tal cultura sempre foi uma pálida imitação da elite branca européia, tanto paródia quanto pastiche involuntário, pois enquanto Ibsen já representava o que havia de moderno, e durante séculos houvessem lutas de todos os tipos e em todas as frentes pela igualdade e pelos direitos humanos, pela diminuição da desigualdade de renda, pela preservação do meio ambiente e tantas outras, a nossa elite seguiu encastelada, calcificada, estratificada e burra.
Onze anos mais novo que Rimbaud, meio século mais novo que Whitman, vinte anos mais velho que Ezra Pound e vinte e oito mais velho que Maiakóvski, vivendo no tempo de Ibsen, Olavo Bilac punha um monóculo e saía no calor do Rio de Janeiro de fraque.  Dizendo da pátria "de virgens selvas e de oceano largo", dando vazão à idéia do Brasil Grande, paradisíaco, praia e céu de uma elite dissociada do povo, foi o tal "príncipe dos poetas" tupiniquim. Como bom inglês de aquário, tomava seu chá das cinco na Academia - como os outros Imortais, de luvas brancas, segurando a caríssima porcelana importada, com gestos elegantes copiados de viagens ao exterior para ver a pátria-modelo, mesmo proclamando seu amor ao "rude" idioma da pátria-mãe. Realmente, quem tem titica de galinha na cabeça não devia morar em país tropical.
Quod erat demonstrandum.

9 de jan. de 2010

Esperteza

Quando li a primeira vez sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado esses dias pelo governo Lula, me veio à cabeça uma frase do Tancredo: "Esperteza, quando é demais, cresce e engole o dono". Pois o tal programa me pareceu uma grande peça eleitoral, feita sob medida para agradar a uma grande, enorme parcela de descontentes com os rumos que o PT da "realpolitik" tomou. O governo Lula está enquadrado nas grandes políticas de mercado, nenhum outro governo deu tanto lucro e atenção aos bancos (nem mesmo o Proer do FHC), o meio ambiente está sempre em segundo plano - vide a briga para liberação de licenças ambientais, com a Dilma fazendo pressão para colocar o desenvolvimento na frente de tudo e dane-se o resto - e no Congresso, alia-se a Collor, Sarney e escumalha.
Um petista que fosse congelado no tempo em 1980 e acordasse agora acharia estar vivendo um pesadelo ou uma piada de mau gosto. Os atuais ficam constrangidos e entram nas justificações do "pelo menos", do "antes nós que eles", etc. As mesmas justificativas do "bem maior" que salvam a cara da ditadura cubana e que Goebbels usou tão bem para enganar e desviar a população alemã. Aí, na entrada do ano eleitoral, o governo joga um osso à esquerda. Embrulha num único pacote todas as reivindicações da ala autêntica do partido e arma o palco. Leva duas vantagens: prova que não abandonou "a causa", de um lado, e joga a culpa pela não aprovação ou execução do programa nas elites eternas - prendam os suspeitos de sempre, dizia aquele inspetor em Casablanca. E o governo tem agora uma bandeira e uma desculpa para afirmar-se de esquerda e comprometido com os fundamentos petistas na campanha... se posto em prática, o programa permitirá a realização de vários sonhos petistas, como instrumentalizar a justiça, proteger o MST, controlar a imprensa, acabar com o agronegócio e começar um simulacro de planejamento estatal da organização social, sob controle dos nossos queridos stalinistas de plantão. Se não fosse só uma peça de propaganda, era perigoso até o Babá pedir para voltar, banhado em lágrimas de arrependimento e torcendo as mãos como num palco.