Pouca gente sabe o quão profunda foi a ligação entre Miró e João Cabral de Melo Neto. João admirava em Miró coisas que, à primeira vista, são antagônicas a ele, João. Mas ele mesmo deu a pista em Dúvidas apócrifas de Marianne Moore. João admirava o intuitivo puro que havia em Miró, o lúdico, o menino ancestral que brincava refazendo a realidade. Essa admiração pelo intuitivo puro, vindo de um poeta que parou de fazer versos livres porque achava muito difícil "jogar tênis sem rede", que criava dificuldades para si próprio fazendo poesia com rimas esdrúxulas, cesura interna, etc., e era considerado um ícone da "poesia cerebralista", diz muito do "João interior". Mais ainda porque outra admiração dele é que o elogio máximo que o Miró tinha para algo era "Vivo!", e João adorava ouvir esse "Vivo!", aplicado a uma música, um poema, pessoa, casa, ponte, mulher, palavra.
Para mim, o estudo crítico do João sobre o Miró é uma peça chave no entendimento do Miró, e é uma pena que seja tão pouco conhecido, ainda mais por ter sido feito num período de convivência íntima dos dois. Vou ver se consigo publicá-lo aqui, para download. Mas chega, enchi. O que queria mostrar era esse pequeno poema do João sobre o reinventar-se constantemente do Miró - algo que falta em nós, que acho que a cada x anos a gente devia destruir todos os altares interiores, expulsar os vendilhões do templo, sacrificar as vacas sagradas e começar de novo.
O sim contra o sim
(João Cabral de Melo Neto)
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade;
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
Entrelinhas, entremontes
Há um ano
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