"Os contos de fada não ensinam às crianças que dragões existem. As crianças já sabem que dragões existem. Os contos de fada mostram às crianças que dragões podem ser derrotados".
G.K. Chesterton
.....Eu, como autodidata, faço jus à má fama que o Otto Lara Resende atribuía aos brasileiros em geral: sei, como todo bom brasileiro, os três primeiros minutos de qualquer assunto. Mas como autodidata em quase tudo, de marcenaria a semiótica ou de poesia a adjetivação de governos, acabo tendo que seguir "pistas": uma coisa leva a outra, uma menção de um autor remete a outro livro, que por sua vez leva a outro autor e assim por diante. Foi assim que conheci Vladimir Propp: e em boa hora.
.....Quando comecei um curso chamado Masterpieces of the Imaginative Mind, com o Prof. Eric S. Rabkin, da Universidade de Michigan (mais sobre o curso aqui), a segunda aula intitulava-se Propp, Structure, and Cultural Identity. O nome fez soar algo: já tinha ouvido falar dele... onde? Logo fui atrás do seu livro mais famoso, que se chama Morfologia do Conto Maravilhoso - uma análise instigante sobre as "leis" que regem a formação do conto maravilhoso, de narrativa oral (ao menos inicialmente). Lembrei-me então da primeira vez que o ouvi - em Guimarães Rosa. Novamente, em Italo Calvino. Por último, num discurso do Umberto Eco. Os dois primeiros são notadamente, a meu ver, escritores fabulares, fabulosos: os contos do Rosa seguem a estrutura morfológica dos contos fantásticos dos irmãos Grimm e as categorias de Propp. Um burrinho que sai em aventuras; conversas de bois; a volta do marido pródigo; todo o Sagarana, para ficar em um único livro, é permeado pela narrativa oral, que, como notou João Cabral de Melo Neto, mostra o gênio do Rosa em "fabricar" histórias que poderiam passar por cultura popular oral, e que vão além. Calvino não fica atrás: um barão que vive nas árvores, um cavaleiro que não existe - ou melhor, existe por pura vontade de existir - e um visconde partido ao meio, por exemplo. Mas nas Seis Propostas para o Próximo Milênio e no Por que Ler os Clássicos ele revela essa influência de maneira mais expressiva ainda, quase como proposta de leitura. O fantástico em Umberto Eco é mais aprimorado e não chega a atingir a "arte da fábula", e nem é essa a proposta dele, acredito. Em Umberto Eco você pode descobrir camadas de significado, palimpsestos, onde um bibliotecário cego chamado Jorge de Burgos remete a Jorge Luis Borges, com a sumprema ácida ironia de querer destruir o riso escondendo um livro sobre comédia...
.....Em Propp está o início do estudo do conto maravilhoso e sua relação com os ritos, os mitos, a historicidade e mais além - fiquei intrigado com as relações entre cultura popular e conto oral, entre costumes, ritos e crenças e sua inclusão ou aderência à cultura em geral. E ainda mais impressionado com o uso que tanto Calvino quanto Rosa fizeram dessa estrutura, projetando a cultura um passo além, criando seu próprio universo de fábulas e contos. O curso do Prof. Rabkin não segue por esse caminho, preferindo enveredar pelo fantástico e pela ficção científica, cyberpunks e pósmodernismos. Preferia que tivesse se aprofundado na arte de desnudar o inconsciente coletivo e de contar histórias, como fizeram Rosa e Calvino.
Entrelinhas, entremontes
Há um ano
2 comentários:
Não entendo como não há comentários no seus textos ,eles são muito bons!
Lua, agradeço o comentário... o blog é meio "secreto", uma vez que divulgação não é o propósito (nem o meu forte). É uma oportunidade de escrever sobre motivações, leituras, pensamentos soltos, etc. Que bom que gosta. Estou vendo os seus blogs. Grande abraço.
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