28 de ago. de 2009

Quixote

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Na minha época, e acho que hoje menos, uma das diversões da infância eram histórias em quadrinho - os super-heróis, Super-Homem, Batman, Lanterna Verde, Thor "o deus do trovão" e por aí vai. Um comediante americano diz que na infância esses heróis não são fantasia, são opções, e que secretamente carregamos esse desejo pelo resto da vida - desejos de um dia desses incinerar a gravata com um olhar, rasgar os céus e ir parar numa praia do Caribe. Ou a desconfiança de que algum chefe pernóstico é, na verdade, um gênio do crime que se revela depois do serviço e sai por aí cometendo delitos e roubando velhinhas - a encheção de saco durante o dia é só treino. Porque, claro, temos os supervilões também - alguns, sutis, usam o poder da mente para enfraquecer a força de vontade dos mortais comuns e são a maioria em células de telemarketing, onde tentam destruir a vontade de fazer o bem do resto da humanidade, usando o superpoder da chatura infinita.
Acho que, no fundo, temos não uma "identidade secreta", mas uma identidade sonhadora - uma reação à vida cada vez mais cheia de restrições e imposições e cada vez mas vazia de humor, fantasias, de fábula, uma identidade que supre a ausência do maravilhoso no mundo. E não há herói que encarne melhor essa vontade de vida do que Dom Quixote - o invencível, o incomparável, o invulnerável Dom Quixote. O mundo se povoa do mágico, do fantástico, e até ali o mal se estende, mas a luta permanente desse herói não dá trégua: invariavelmente derrotado, levanta-se e luta de novo, com uma crença inabalável no bem. Só perderia se deixasse de acreditar em si mesmo, e isso nunca acontece. Kafka achava que, na verdade, o Dom era uma invenção de Sancho - este, a identidade secreta que, ao ver em perigo o mundo (ou talvez achar o mundo cinza, chato), se transformava no digno cavaleiro, herói sem mácula e sem razão, e saía combatendo o mal onde este se apresentasse. Ficaria mais habitável o mundo hoje em dia se fôssemos todos Sanchos - mesmo que o cavaleiro fosse fruto da imaginação e o fiel escudeiro a identidade secreta desse daimon cheio de força e vontade de viver, temos que nos lembrar que o escudeiro o acompanhou até o fim. Uma ótima metáfora de se deixar guiar pelo fabuloso e divertido e acompanhar os sonhos. No livro, Sancho parece se dar conta de que tudo aquilo era fantasia - e defende a fantasia pelo que ela traz de experiência real e palpável, pelo que traz de saboroso à vida. O diálogo abaixo, do fim do primeiro livro, se dá quando o Dom é levado de volta para casa, alquebrado e acamado, e o Sancho é interpelado pela esposa, Joana Pança:

"- Louvado seja Deus - redargüiu ela - que tanto bem me tem feito; mas conta-me agora, que lucraste com as tuas escudeirices? que saiote me trazes? que sapatos para teus filhos?
- Não trago nada disso, mulher - disse Sancho - mas trago coisas de mais consideração e valor.
- Muito me apraz o que dizes - tornou a mulher; - mostra-me essas coisas de mais consideração e valor, para que se me alegre este coração que tão triste e desconsolado esteve sempre, durante os séculos da tua ausência."


[aqui continuam mais lamentos e cobranças e respostas de Sancho à esposa, até que ele encerra com essa belíssima fala:]

"- Não queiras saber tudo tão depressa, Joana; basta conheceres que eu digo a verdade, e dá um ponto na boca: só te direi, assim de passagem, que não há coisa mais saborosa neste mundo do que ser um homem honrado escudeiro de um cavaleiro andante, que sai a cata de aventuras. É bem verdade que a maior parte das que se acham não vêm tanto ao nosso gosto, como uma pessoa quereria, porque, de cem que se encontram, noventa e nove costumam ser avessas e torcidas. Sei-o eu por experiência, porque de algumas saí manteado e de outras moído; mas, com tudo isso, é linda coisa esperar os acontecimentos, atravessando montes, esquadrinhando selvas, calcando penhas, visitando castelos, pousando em estalagens, à discrição, sem pagar um maravedi só que seja."

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