29 de abr. de 2010

Orelha verde

"[A Biblioteca] compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. "

"A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta."

"Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura decifrara: a natureza disforme e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha ate à última. Outro (muito consultado nesta área) é um simples labirinto de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo, tuas pirâmides."

A Biblioteca de Babel

O que Borges faz, em sua biblioteca (que alguns chamam de Universo), é mostrar as infinitas possibilidades da realidade. Os livros são combinações aleatórias de símbolos, o que permite uma extensão interminável mas não infinita (existe uma sugestão óbvia de que existem outras bibliotecas com número maior ou menor de páginas em cada livro, ou com formatos e números diferentes de estantes, ou com mais linhas em cada página, ad infinitum). Seria possível, então, existirem dois livros praticamente iguais, mas em que na linha 8 da página 206 uma palavra teve a letra "b" substituída por "z" - e assim em todas as combinações possíveis. Portanto, se existe um livro para descrever uma realidade no seus mínimos detalhes, existirá então um número infinito de livros que descrevem realidades semelhantes com diferença em alguns ou um detalhe, talvez irrelevante. Posso imaginar uma realidade onde todos têm uma das orelhas verde, e a civilização é em tudo igual à nossa, nos mais ínfimos detalhes. Em outra, isso (a orelha verde) é de conhecimento comum e Vermeer não pintou a "Moça com Brinco de Pérola".

*Em uma terceira, o uso da luz e a transparência dada a essa pintura precipitou o movimento conhecido como imagismo.

Borgianas

Um dos "pecados" de Borges, a meu ver, é sua falta de humor. Ele é talvez sério e autoconsciente demais, embora toda a sua obra seja uma refinada ironia da realidade. Entretanto, essa ironia às vezes ultrapassa a metalinguagem e a metafísica (seria mais correto se se entendesse que essa metafísica se refere a realidades inventadas) e comete construções e descrições deliciosas. O estereótipo perfeito do inglês, abaixo:
"Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no hotel de Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e apático, e a sua canosa barba retangular havia sido ruiva. Creio que era viúvo, sem filhos. De tantos em tantos anos ia a Inglaterra: visitar (julgo eu por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. O meu pai estreitara com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo."
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

27 de abr. de 2010

Ezra Pound

Pound foi provavelmente a influência única mais duradoura em meus estudos de literatura. Tanto como guia como adversário: a primeira vez que li a sua concepção de "paideuma" achei de uma arrogância sem limites. O paideuma seria, nas suas palavras, "a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”. E, claro, a "parte viva" era escolhida por ele! Li então de maneira onívora, tudo que achava pela frente. Se tivesse lido só o paideuma poundiano teria sido mais eficiente... o louco estava certo. Suas lições de poética, de literatura, o make it new, a carga de cultura a que a gente aspira para ler os Cantos na sua totalidade... a condensação como virtude necessária, o fazer exato. "O que quero dizer é que um teólogo medieval tinha o cuidado de não definir um cachorro em termos que sei para se aplicar igualmente ao dente do cachorro ou ou ao barulho que ele faz quando bebe água; mas todos os seus professores dirão a vocês que a ciência se desenvolveu mais rapidamente depois que Bacon sugeriu o exame direto dos fenômenos e depois que Galileu e outros cessaram de discutir as coisas em excesso e começaram a olhar realmente para elas e a inventar instrumentos (como o telescópio) para vê-las melhor". O exame direto e comparativo da poesia, da literatura, sem preconceitos. Ressuscitou continentes poéticos como os provençais. Descobriu a poesia chinesa para o ocidente. Vanguarda da vanguarda. "Certa vez", conta Luciano Ancescchi, "apresentaram a Pound um famoso livro de estética filosófica". Ao restituí-lo, o poeta disse no seu italiano peculiar: "Tutto belissimo, ma non fonctiona". Estou traduzindo e legendando um vídeo chamado Ezra Pound - Voices and Visions. A primeira parte abaixo, seguida de alguns trechos do seu ótimo ABC da Literatura:



"Para Pound, o método adequado de estudar literatura é o método dos biologistas: exame cuidadoso e direto da matéria, e contínua COMPARAÇÃO de uma lâmina ou espécime com outra. Este o seu método ideogrâmico (crítica via comparação e tradução). Derivou-o do estudo de Ernest Fenollosa sobre o ideograma chinês (The Chinese Written Character as a Médium for Poetry): "Em contraste com o método da abstração ou de definir as coisas em termos sucessivamente mais e mais genéricos, Fenollosa encarece o método da ciência, "que é o método da poesia", distinto do método da "discussão filosófica", e que é o meio de que se servem os chineses em sua ideografia ou escrita de figuras abreviadas.""
(...)
"Os escritores são por ele classificados nas seguintes categorias: 1 — Inventores. Homens que descobriram um novo processo, ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo; 2 — Mestres, Homens que combinaram ura certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores; 3 — Diluidores. Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho; 4 — Bons escritores sem qualidades salientes (a classe que produz a maior parte do que se escreve). Homens que fazem mais ou menos boa obra em mais ou menos bom estilo do período. Sonetistas do tempo de Dante, etc. "Ils n'existent pas, leur ambiance leur confert une existence."; 5 — Belles Lettres. Os que realmente não inventaram nada, mas se especializaram numa parte particular da arte de escrever 6 — Lançadores de modas. Aqueles cuja onda se mantêm por alguns séculos ou algumas décadas e de repente entra em recesso, deixando as coisas como estavam."
(...)
"Há três modalidades de poesia: 1 — Melopéia. Aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical, (som, ritmo) que orienta o seu significado (Homero, Arnaut Daniel e os provençais). 2 — Fanopéia. Um lance de imagens sobre a imaginação visual (Rihaku, i.é, Li Tai-Po e os chineses atingiram o máximo de fanopéia, devido talvez à natureza do ideograma). 3 — Logopéia. "A dança do intelecto entre as palavras", que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não se pode conter em música ou em plástica (Propércio, Laforgue)."

Talvez sobre Pound pudesse ser dito o que o trovador Giraut de Bornelh disse sobre Raimbaut D'Aurenga: Er'es morta bela foldatz - eis que está morta a bela loucura.

14 de abr. de 2010

Sem choro

         é como se fosse uma guerra
onde o mau cabrito briga
         e o bom cabrito não berra

                                    *Paulo Leminski, Travelling Life

         Death without weeping é um livro da antropóloga Nancy Scheper-Hughes sobre o Nordeste brasileiro. Morte sem chorar, título que vem da tradução de um verso de Disparada, de Geraldo Vandré:

Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo prá consertar...


         Descobri o livro através do curso Peoples and Cultures of the World, do Prof. Edward Fischer, da Vanderbilt University. O título do livro refere-se à (in)capacidade das mães de expressar dor pela perda de suas crianças - a comunidade onde ela viveu e pesquisou (Alto do Cruzeiro, Timbaúba-PE) tinha uma taxa de mortalidade infantil acima de 50%, fazendo com que a morte das crianças fosse a regra, não a exceção. As mães não mais choravam quando as crianças morriam, numa rotineirização da morte, se desapegando de seus filhos e investindo emocionalmente apenas naquelas que tinham maior chance de sobrevivência ou que atingiam determinada idade. A autora diz que o pensamento corrente de que há uma ligação instantânea entre mãe e criança é uma "crença burguesa" ocidental e está longe de ser um fenômeno universal.
         Tive uma reação forte a essa tese - de um lado a descrição que o Prof. Fischer faz das condições de pobreza da população nordestina em questão foi de um espanto que me espantou: acho que acabamos nos acostumando com as notícias de morte, pobreza e fome em grande parte do país, e ficamos cada dia menos preocupados, porque afinal temos programas de renda mínima, a economia cresce, etc., etc., acabamos nos distanciando e racionalizando esse distanciamento e alheamento em relação ao outro. Ajuda quando o outro está confinado a grotões nordestinos, não é? Aí vem o Prof. Fischer e faz uma descrição espantada de como é morrer de fome - "alguém pode imaginar como é ficar tanto tempo sem comida que o corpo literalmente começa a devorar a si próprio?!", indaga, com espanto. Deve ser realmente difícil para um americano preocupado com as taxas de obesidade da própria sociedade imaginar uma situação dessas. O óbvio horror e espanto na voz do professor trouxe à tona meus próprios espantos e horrores há tanto calados ou adormecidos, me deixando extremamente desconfortável: realmente, na oitava economia do mundo, é um espanto, um horror, uma indignidade, uma desumanidade. Como podemos chegar a um ponto de alheamento com o próximo de que até quando morrem como moscas - e crianças! - não nos indignamos mais?
         A outra parte da reação veio das vantagens (ou, no caso, larga desvantagem) de ter uma memória quase-eidética: lembrei-me de uma reportagem da Veja da minha infância, que me horrorizou na época (consegui resgatar essa reportagem hoje, no acervo digital da Veja). E o que tinha me horrorizado então era exatamente o distanciamento dos pais  - a reportagem era sobre os efeitos da seca nas famílias nordestinas, mais exatamente a mortalidade infantil, que o repórter chama de "genocídio" - a reportagem começa com a frase "Meus filhos são muito morredor". Logo mais, o mesmo pai olha sua filha mais nova e completa: "Essa aí mesmo não sei se vinga". (reportagem completa aqui).
         Achei isso tudo de uma violência inaudita. A pobreza e as condições de vida que forçam mães a se desapegarem de seus filhos, a morte não chorada, o investimento emocional em crianças que podem "vingar" - a antropóloga diz que isso é uma cultura burguesa, o amor materno, etc., mas não acredito inteiramente nisso não. A espécie humana é a de maior tempo de desenvolvimento da cria até a independência total dos filhotes - uma espécie marcadamente seletiva, com características biológicas que impelem as mães à seleção cuidadosa do macho, que é primordialmente monogâmica talvez até para um investimento conjunto no capital genético mútuo do casal (estou extrapolando um tanto do comportamento de gorilas e chimpanzés, além de conhecer muito pouco sobre o assunto)... de qualquer modo, são participantes de uma cultura, religião e sociedade que valorizam esses "instintos", sejam eles culturais, biológicos ou uma sobreposição ou interposição dos dois. Dentro disso, a vida madrasta fazer com que essas mães passem a "guardar o choro", a se desligarem emocionalmente dessa maneira, acho violentíssimo, uma violação completa da dignidade humana. As palavras de Irene Preta, moradora do Alto do Cruzeiro (Timbaúba, PE):

"Não chore pelas crianças que morreram aqui no Alto do Cruzeiro. Não gaste suas lágrimas com elas. Tenha pena de nós, chore pelas mães condenadas a viver".
Em um artigo da UFPE (aqui), a visão é um pouco diferente:
         “Um estudo premiado internacionalmente, realizado pela antropóloga americana Nancy Scheper-Hughes examina as atitudes de moradoras de uma cidade da Zona da Mata Pernambucana diante de altíssimos índices de mortalidade infantil. Muito admirada com o grau de pobreza no local (neste sentido, a visão da antropóloga lembra as comparações dos demógrafos entre continentes para ressaltar a pobreza do Nordeste) ela classifica a convivência com a mortalidade infantil como parte da “violência da vida cotidiana”, e insiste em como ocorre um endurecimento das mães diante de processos de adoecimento e de morte de filhos. Discute o abandono da esperança de sobrevivência de filhos em estados adiantados de desnutrição. Nos enterros, descreve as atitudes estóicas das mães - a pouca demonstração aberta da perda. Não cabe aqui abordar as muitas implicações interpretativas sobre a fome, a valorização da vida humana e sobre os processos de desenvolvimento desigual que este trabalho levanta. Mais uma vez, isto seria alvo de outro estudo fascinante e doloroso.
         O trabalho de Scheper-Hughes ainda suscitou uma resposta de outras antropólogas, mais culturalistas e menos estruturalistas, alegando que o estudo tinha errado o alvo porque a Professora Scheper-Hughes não soube entender os significados de certas crenças sobre as implicações de lamentações muito emotivas com derrame de muitas lágrimas. No artigo chamado “Anjos com asas molhadas não voam” estas antropólogas mostram que, de acordo com a visão nordestina do caminho percorrido por "anjinhos" para chegar no céu, uma lamentação com muitas lágrimas poderia impedir que os bebês que morreram chegassem a alcançar o seu devido lugar no céu. E há diversas outras implicações culturais discutidas.”
         Para mim, essa idéia de que "anjos de asas molhadas não voam" é uma violência ainda maior, uma vez que racionaliza a perda com a perspectiva de ida direta para o céu, desde que a mãe fique de boca calada e olhos secos. Um crime de lesa-humanidade cometido pela sociedade como um todo. Mas o que um estudo de 89 (entre 65 e 89) e uma reportagem de 83 tem a ver com o momento atual? Não estamos surfando a "onda BRIC"? Não temos o bolsa isso e aquilo?
         Pois semana passada a ONU divulgou um estudo em que o Brasil, oitava economia do mundo, aparece novamente como o 75º em desenvolvimento humano. "Os indicadores do Brasil em saneamento básico são, na área urbana, inferiores aos de países como Jamaica, República Dominicana e Territórios Palestinos ocupados". Mais: "O Brasil rural amarga índices africanos. O acesso a saneamento básico adequado é inferior ao registrado entre camponeses de nações imersas em conflitos internos, como Sudão e Afeganistão". E isso numa época de bonança econômica sem precedentes.
         Agora, na próxima vez que Maluf, Arruda & Cia se locupletarem com milhões, no dia em que deputados e senadores aprovarem medidas de "alívio tributário" a gigantes empresariais, ou Lulinha ganhar milhões em uma empresa de jogos por conta do papai, ou José Dirceu "assessorar" uma empresa a comprar cabos a R$ 1,00 e depois vender ao governo por R$ 6.000.000.000,00 - deviam ser todos julgados em Haia, além de condenados a ir em todos os enterros de anjinho do país, compungidos, segurando velas - e chorando! Cada vez que desviam centavos ou milhões ou legislam em causa própria, podiam muito bem cortar os intermediários - fome, miséria e congêneres -, pegar um machado e matarem eles mesmos as criancinhas. E cada um que votar nesse povo pega numa pontinha do machado e na alcinha do caixão. Pronto, desabafei. Ando comunista de tudo esses dias (mas, como dizia Tancredo, pra esquerda eu não vou, não adianta empurrar).


*Alguns capítulos do livro aqui.

* Link para o livro no Google Books aqui.

* Reli e o post tá uns dois tons acima do desejável... tô parecendo um Gustavo Corção de Salinas. Mas vá lá, essa moça e o estudo tiveram um impacto emocional forte em mim.

13 de abr. de 2010

Expectativas

..........Uma pesquisa relativamente recente chegou às minhas mãos, com alguns dados esclarecedores: 19% do americanos acham que estão entre os 1% dos americanos de maior renda do país, o topo do topo da pirâmide. E outros 20% acham que estarão entre os 1% de maior renda em algum momento da vida. Somados, 39% dos americanos acham que estão ou estarão entre os 1% de maior renda no país, algo em torno de 2 milhões de dólares por ano. Outros quase 40% acham que mudarão de estrato social e subirão na pirâmide de renda. Tal nível de expectativa pode explicar boa parte da ojeriza americana frente à distribuição de renda, políticas inclusivas ou aumento de impostos - se juntarmos a isso a "ética protestante", em que o trabalho (e a acumulação) é dever e dignidade do homem e a riqueza quase uma distinção moral, temos uma sociedade extremamente individualista - quase um aglomerado de indivíduos com altas expectativas - e chance quase zero de um consenso em torno de objetivos comuns ou comunitários. Se isso reforça os laços comuns e as exigências de retorno de impostos em forma de serviços em comunidades ou grupos menores, propaga-se como exigência de manutenção do status quo quando se trata de políticas de maior alcance global. Os exemplos de revolta contra o "intervencionismo" do estado podem ser notados desde os protestos contra "invasão" em assuntos locais, como educação ou porte de armas, até a quase revolta contra o novo sistema de saúde, que incluirá mais de 10 milhões de pessoas que antes não tinham acesso a qualquer tipo de assistência médica.
..........Essa simplificação acima pode explicar os americanos, mas não nós. Aqui acredito que devamos o atraso e a desigualdade de renda não só ao modo capitalista de produção, mas à replicação de estruturas sociais caquéticas que se multiplicam desde os tempos coloniais. Caciques e coronéis, sesmarias e cartórios, um completo alheamento da coisa pública em relação ao público, séculos de estratificação social - Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro já faziam retratos acurados dessa "doença" uns quase 80 anos atrás (Casa Grande, por exemplo, é de 33). Mas o diagnóstico não é novidade - o interessante é a capacidade das "classes superiores" de propagar a manutenção desse sistema excludente mesmo em sistemas liberais democráticos onde teoricamente tais questões poderiam ter uma decisão comunitária e por voto. Lula, ávido pelo poder, assinou uma Carta aos Brasileiros onde fez um mea culpa e jurou ao capital internacional que não faria nada radical em favor dos 60 milhões de miseráveis de então. As outras propostas passam por um sistema arcaico de totalitarismo com implantação de engenharia social estatal, como nos regimes comunistas uma vez defendidos pela Dilma - os avanços de Cuba, China e União Soviética passam pela contabilidade dos milhões de assassinatos em prol do bem maior... um colega comunista fez uma contabilidade assustadora de quantos brasileiros que morrem de fome, de drogas (não tinha viciados na União Soviética?), violência urbana, etc., seriam "salvos" pela cubanização do país, algo em torno de milhões. Não aceitou que eu colocasse do outro lado da coluna contábil os milhões de Stálin e Mao, nem os milhares de Fidel - só as centenas dos paredões, justificados porque estavam "em guerra".
..........As expectativas dos americanos e brasileiros e as estruturas, laços, arquétipos e autoimagens sociais são os principais adversários de qualquer política real de inclusão social. O convencimento de que algo deve ser feito e pode ser feito, entretanto, devia começar comigo! Não vejo nenhuma proposta real de mudança, de nenhum lado. Nem mesmo os sonhos totalitários são apresentados como alternativa. O "Estado Grande" é só mais uma figura paternalista, coronelística e cartorialista que vai ser montado pelas máquinas partidárias. O mantra do Mencken - de que ninguém nunca perdeu dinheiro apostando contra a decência humana - ganha contornos de verdade salutar se acrescentarmos que a decência humana sempre cede ao interesse individual. Entretanto, não faltam sonhadores - porque a realidade é obviamente dissonante? Tem sido assim já há milênios! E há dois séculos temos a indignação dos sonhadores socialistas... eu tenho grande simpatia pessoal pelos socialistas utópicos e científicos, mas não pelas suas soluções. Quem dentre nós, vendo toda essa miséria, desigualdade e injustiça, não se sentiria como Engels, que "em Londres viu o maior aglomerado humano que jamais conhecera, porém aquelas pessoas lhe pareciam átomos. Aquelas "centenas de milhares de indivíduos de todas as classes e categorias que se acotovelavam" não eram, não obstante, "seres humanos com as mesmas capacidades e faculdades, e com a mesma vontade de serem felizes? E, em última análise, não serão eles obrigados a buscar a felicidade do mesmo modo, através dos mesmos meios? E assim mesmo acotovelam-se como se nada tivessem em comum, como se um nada tivesse a ver com o outro, como se o único entendimento que houvesse entre eles fosse o acordo tácito de que cada um deve ficar em seu lado da calçada, para não atrapalhar a correnteza que vai no sentido oposto, e jamais ocorre a ninguém a idéia de conferir a um de seus semelhantes um olhar que seja. A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um em seus interesses pessoais, é tanto mais repelente e ofensivo quanto maior o número de indivíduos arrebanhados num espaço limitado."

12 de abr. de 2010

Comentarii

No post "Memórias, labirintos, mulheres" citei a Viúva de Bath, do Chaucer:


"Mas agora, por Santo Tomás, vou contar-lhes a verdade por que rasguei aquela folha do livro dele e levei a bofetada que me deixou surda. Tinha ele uma obra que noite e dia estava sempre lendo com gozo e satisfação; dizia chamar-se Valério e Teofrasto, e suas páginas lhe provocavam boas gargalhadas. Além disso, havia outrora em Roma um clérigo, um cardeal, de nome São Jerônimo, que escrevera um livro contra Joviniano, que ele também possuía; e mais Tertuliano, Crisipo, Trótula, Heloísa, que era abadessa perto de Paris, os Provérbios de Salomão, a Arte do Amor de Ovídio, e muitos outros... e todas essas obras estavam encadernadas num só volume. E, como eu disse, noite e dia, sempre que dispusesse de um momento de lazer ou folga em suas ocupações, era seu costume tomar desse calhamaço e ficar lendo a respeito de mulheres pérfidas. Sabia mais lendas e casos sobre elas que sobre as mulheres virtuosas da Bíblia. Porque,podem crer, é impossível encontrar um letrado que fale bem das mulheres (a não ser nas biografias das santas; fora isso, nunca). É a velha fábula de Esopo: “Quem pintou o leão? Vamos, digam-me!” Por Deus, se, em vez dos doutos nos claustros, fossem as mulheres que escrevessem as histórias, veríamos mais maldade entre os homens do que todos os representantes do sexo de Adão poderiam redimir. Os filhos de Mercúrio e Vênus sempre operam em sentidos contrários: Mercúrio ama a sabedoria e a ciência, enquanto Vênus prefere as festas e o esbanjamento. Devido a essas posições opostas, cada planeta tem sua queda na exaltação do outro; conseqüentemente, – sabe Deus, – Mercúrio se enfraquece em Peixes, signo em que Vênus se eleva, e Vênus cai onde Mercúrio está exaltado. Eis aí porque nenhuma mulher recebe elogios de um douto. E o douto, por sua vez, quando fica velho e não consegue mais prestar serviço a Vênus, mais inútil que um par de botinas rotas, tudo o que faz é ficar sentado o tempo todo, escrevendo, em sua caduquice, que as mulheres são infiéis no matrimônio."


O leão da fábula pergunta "Quem pintou o leão?", indicando que se a pintura fosse feita por um leão, o desfecho certamente seria outro. Agora me ocorreu que a idéia não é nova - aliás, velhíssima: Xenófenes, em sua Teologia, diz:

"Dizem os Etíopes que os seus deuses são negros e de nariz chato,
fazem-nos os Trácios de olhos azuis e cabelos ruivos;
Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões
E pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens,
Os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois,
Desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam
Tais quais eles próprios têm.”


A idéia de que a "verdade" é relativa e dependente do referencial adotado só viria a adquirir importância determinante séculos mais tarde, mas pode-se ver por Xenófanes, Esopo e Chaucer que a idéia de verdade absoluta nunca contou com adesão unânime.

Aliás, o "salto lógico" de Xenófanes é interessante: começa por observar que as cidades da Grécia têm cada uma o seu próprio Deus, o que indicaria que cada Deus favoreceria a cidade que o reverenciava; como as leis de cada cidade (que para Xenófanes indicavam ou incorporavam o espírito da sociedade) eram diferentes, ele arguía que cada Deus obedecia ou favorecia leis relativas, e que tipo de Deus é um Deus relativo? Daí o salto lógico em direção a um deus único, superior aos demais... que vai se inflar e englobar ou incorporar tantas porções do universo que, quando chega em Spinoza, acaba se confundindo com o próprio universo e perde o livre arbítrio.

* Os Contos da Cantuária, em tradução do Paulo Vizioli, aqui.

9 de abr. de 2010

Memórias, labirintos, mulheres

O homem pode ter vindo do macaco. Mas todas as notícias de Brasília indicam que já está pegando o caminho de volta.

.....Há algum tempo escrevi sobre a peça Casa de Bonecas, do Ibsen (download aqui) - onde a personagem Nora, no final, diz que não quer ser feliz como mulher, mas como ser humano - não quer se limitar ao papel de esposa, à circunscrição social então imposta como papel da mulher. A obra é de 1879 e deve ter causado certo impacto na época.
.....Mas o que despertou a minha lembrança foram dois fragmentos: o nome Marguerite de Navarre, numa dedicatória de Rabelais, e um blog que recebi via rss, do JBOnline. A lembrança do nome de Marguerite de Navarre é mais antiga, e procurei a respeito dela já há algum tempo - a Wikipédia em português traz somente que ela é "irmã de Francisco I". Foi muito mais que isso: amiga de Rabelais e Erasmo, protetora de João Calvino, mandou traduzir Bocaccio para o francês, e, inspirada no Decamerão, escreveu sua própria obra, chamada L'Heptaméron. Já foi considerada a "primeira mulher moderna" - se há coisa de um século ainda era tratada como uma figura menor do Renascimento, hoje é vista como uma pioneira da narrativa feminina e já com uma visão essencialmente moderna, onde a veracidade da narrativa é decidida não só pela realidade mas pelo ponto de vista de quem fala. A crítica Patrícia F. Cholakian vê o Heptaméron como uma transição do romance de cavalaria para uma história do ponto de vista da mulher sobre as escolhas, sofrimentos e lutas femininas. Parece mais feminista do que é: os contos são basicamente historias "morais" onde a virtude do amor casto, da pureza, do amor platônico, levam a melhor sobre o sexo, os desejos e intenções "tipicamente masculinas". Mas a narrativa oferece os dois pontos de vista, embora invariavelmente os argumentos a favor do primeiro tendam a vencer. Desnuda a relação homem-mulher de uma forma levemente maniqueísta, onde os homens tendem a obedecer a impulsos mais "selvagens" e sexuais e as mulheres a serem mais platônicas, puras e românticas, o que não deixa de ser estereotípico de ambos os lados. Mas isso num livro publicado em 1559 e escrito provavelmente uns 20 anos antes. Versão em inglês aqui.
.....Com isso veio a lembrança da peça de Ibsen, e, depois, da viúva de Bath, do Chaucer: a viúva (de cinco maridos) "prova" com sua narrativa que os casamentos podem e são bem sucedidos, desde que o marido "renda-se" à soberania da mulher. Sobre todos os ditos sobre submissão feminina (especialmente hilário o uso que ela faz de São Jerônimo), ela conta uma historinha sobre um leão a quem é mostrado uma pintura de um homem matando um leão: "quem desenhou isso, um homem?", pergunta o leão, rindo-se da confirmação, como a dizer que obviamente um homem faria o desenho dessa maneira, mas se fosse um leão a ter feito o desenho o enredo seria diferente... de novo, como em Ibsen, em uma história escrita por homens, o que leva à percepção de que pelo menos parte da nossa "raça homem" não é assim tão simplória como pinta-se.
.....Claro, isso é uma gota no oceano literário, mas pelo menos mostra como a questão não foi em nenhum momento pacífica. Aliás, pouquíssimo pacífica: a liberação feminina em Languedoc e Provença chegou a ser citada como um dos motivos da Cruzada Albigense, no século XIII, que esmagou os cátaros,  albigenses e seus costumes famigerados, como mulheres herdarem e cuidarem de suas posses, ou, heresia ainda maior, casarem com quem quisessem.
.....Bom, vamos à madeleine: essa digressão toda voltou a ser pensada por conta do tal blog, que se chama Cara de Marido. Uns trechos abaixo e o link aqui. Mas como a frase que abre o post, em certos momentos a evolução parece uma chacota e não uma teoria.

"Ouviram minhas lamentações e me deram conselhos diferentes, porém complementares. A pergunta em questão era: “Vocês concordam com a máxima que diz: para esquecer um ‘amor’, só arranjando um novo?”.


Minha amiga de pronto disse que concordava, que achava praticamente impossível se desligar de alguém, sem que um alguém novo entrasse em jogo. E então, puxou minha orelha com a frase: “Van, solteiro não pode ter preguiça”. Eu fiquei pensando no quanto isso fazia sentido. Muitas vezes ficamos esperando o cara de marido bater na nossa porta, e baby, ele não vai bater. Pelo menos, não assim do nada."

.....Mais um trecho de pura sabedoria oriental:

"Entretanto, o seu cara de marido está aí fora, em qualquer lugar, apenas esperando uma brechinha do destino pra te encontrar. E SE naquele dia, você resolveu ficar em casa? Ou pior, SE naquele dia, você resolveu sair de qualquer jeito de casa? Você vai dizer, “mas Van, eu sou mais do que uma aparência, uma roupa, uma make up”. "

.....Ok, ok, depois faço um post "puro" sobre Marguerite & Rabelais e paro de perder tempo lendo tudo quanto é besteira que me mandam. Mas que de vez em quando parece que desperdiçamos séculos, parece.

7 de abr. de 2010

Pelas barbas de Darwin!

Pesquisa Datafolha publicada em 02/04 revela que 59% dos brasileiros acredita ao mesmo tempo em Deus e em Darwin - atribuindo a Deus desde um "chute inicial" até a formulação de leis que levaram à evolução. 25% acreditam em Adão e Eva e que a Terra tem menos de 10 mil anos - e 67% dos neopentecostais acreditam em evolução! 7% dos ateus brasileiros acham que a Terra tem menos de 10 mil anos e se declaram criacionistas. Com o perdão do trocadilho, uma confusão dos diabos. 

Nos Estados Unidos, 44% são criacionistas "puros". E foi lá, na década de 20, que um professor foi preso por ensinar a teoria da evolução - "acusado" de caluniar o homem como descendente dos macacos. Mencken, que cobria o julgamento, se levantou e declarou que, nesse caso, os macacos é que deviam estar processando o professor... em alguns estados americanos, os criacionistas ainda hoje tentam passar leis que obriguem o ensino da teoria bíblica nas escolas, juntamente com a teoria da evolução - nas aulas de ciência.

Essa esquizofrenia brasileira pode ser explicada pelo desconhecimento das questões apresentadas, pela metodologia da pesquisa ou por puro e simples "jeitinho", uma acomodação entre o que se percebe como "conhecimento científico" e a crença pessoal. Entretanto, o fundamentalismo arraigado dos americanos não tem a mesma força aqui. O que tem força por aqui, de forma mais avassaladora, são o preconceito e o obscurantismo. No último sábado, fui ao Espaço TIM/UFMG do Conhecimento, na Praça da Liberdade (mais informações no Boletim UFMG e no Blog do Marcelo Bicalho). E lá, na instalação Cosmogonias, há cinco painéis com esculturas em papel com os mitos de criação das culturas yorùbá, maxakali, maia-quiché, grega e judaico-cristã. Um dos guias estava explicando, de maneira bastante didática e politicamente correta, cada um dos mitos para um grupo de crianças. A mãe veio furiosa e calou o guia com um "eles não têm idade para escutar essas coisas" e levou as crianças diretamente ao painel da cultura judaico-cristã. Pena que não tinha um puxadinho para a Ku Klux Klan, com cruzes queimadas e enforcamentos, para essa criatura iluminada se sentir em casa.

Mas acredito que essa descendente direta das lagartixas dos pântanos represente o âmago do espírito brasileiro que explica a pesquisa. Branca, classe média alta, provavelmente católica, pelo crucifixo, levava os filhos a um espaço universitário de divulgação do conhecimento. Esse mesmo conhecimento em que, na forma de teoria darwinista, ela diz acreditar nas pesquisas e provavelmente em público. A autoridade do conhecimento científico se mostra tão forte quanto o antigo patriarcalismo dos senhores de engenho. Frente a esse conhecimento se abaixa a cabeça, se concorda e não se confronta: outras pesquisas já mostraram o respeito dos brasileiros pelos "doutores" e pela ciência. Mas é o mesmo respeito que um babuíno ou um papua da Nova Guiné mostraria pelo poder de fogo superior do invasor. No recôndito seguro da casa ou nas relações protetoras com os filhos abre-se a porta para se sentir mais em casa queimando cruzes e livros heréticos, disseminando preconceitos milenares, do que concordando com qualquer possibilidade de respeito ou diálogo com outras culturas e saberes.

6 de abr. de 2010

Em defesa dos EUA

Paulo Francis não era para principiantes: o artigo que dá nome ao post mostra como ele se tornou um ícone de parte da esquerda, antes de "pular a cerca" e se converter num ícone de determinada direita, escrevendo ou, global, falando no quadro "Diário da Corte" da Rede Globo - sendo a tal corte, obviamente, Nova York. O protagonismo de Francis encontra paralelo nos jornalistas americanos do início do século XX, como Mencken, ou até mesmo Noel Coward e Edmund Wilson. Aqui, talvez só o Nelson Rodrigues tenha angariado tanta antipatia quanto ele - mas o Nelson nunca escondeu suas preferências, e não fez a hipérbole ideológica do Francis, que percorreu todo o espectro político.
Entretanto, acho injusto considerá-lo, como fez a "esquerda festiva" que ele açoitava, um direitista puro-sangue: era antes um liberal-democrata que atacava à direita e à esquerda, ou a esquerda, com "pena embebida em cicuta", para ressuscitar uma imagem barroca. O artigo abaixo, parte de um livro que engloba suas colunas do período 1971-1975, mostra Francis em ação - para quem não se lembra da sua peculiaríssima maneira de falar, aqui,  aqui e aqui vídeos com "amostras"...
Francis também foi responsável por um dos episódios mais hilários, na minha opinião, já exibidos pela Rede Globo. Quando do primeiro arrastão nas praias cariocas, um escândalo para a época, o então governador Leonel Brizola (outra figura, com um sotaque quase tão divertido quanto o do Francis), foi na Marília Gabriela se explicar. Acuado, quando perguntado por sua versão dos fatos e cobrado por soluções, saiu-se com essa: "Não, Marília, os garotos queriam somente se divertir, ir à praia, Marília... a solução Marília, é fazer piscinas nos CIEPs, Marília...". A cara de incredulidade da Marília Gabriela foi impagável, enquanto tentava interromper a catarata de asnices com um "Governador! Pára aí, governador! Governador! Ô Governador! Nem tanto, Governador!!!".
Mas a réplica do Paulo Francis foi ainda melhor: no quadro do Fantástico, aparece um Francis puto da vida, com aquele falar característico, indignado: "Brizola agora quer ensinar pivete a nadar! O único lugar seguro no Rio de Janeiro será o ar! Mas não se acomodem: Brizola ainda vai dar curso de asa delta pra pivete!"...

O livro Paulo Francis Nu e Cru para download aqui, no ótimo site LetrasUsp.

Em defesa dos EUA
* O texto, se não me engano, é de 72 – republicado em 76 no livro “Paulo Francis Nu e Cru”


Agora que as cravelhas americanas estão caindo em alguns lugares, nenhum muito importante, falando nisso, até publicações conservadoras como The Economist acusam os EUA de uma política externa inepta e destrambelhada.


Peço vênia para discordar. Nunca houve uma política externa que funcionasse tanto como a americana, quando consideramos, a bem da verdade e da justiça, os handicaps que tem de enfrentar.


Considerem: durante 23 anos, de 1949 a 1972, Washington conseguiu convencer a 2/3 do mundo que a ilhota de Taiwan era A CHINA, enquanto que a China propriamente dita não passava de ilusão de ótica, sendo populada por 800 milhões de energúmenos cuja única ocupação consistia em correr de um lado a outro do imenso e desperdiçado território, sem Beba Coca-Cola discernível nas ruas, brandindo um livrinho vermelho.


Se a China desapareceu 23 anos, o que dizer do inflacionamento da ilha de Cuba, que, entre 1959 e 1963, ameaçou militarmente o nosso champã, inclusive pretendendo converter Búzios em campo de colheita de cana, quando se tornaria insuportavelmente shangai? É com nostalgia sentida que recordo as manchetes de “O Globo” e outros diários democráticos em nossa pátria sobre o “barbudo tirânico” e a “cubanização do hemisfério”. Olhem o mapa e vejam o perigo de que escapamos graças à fiel praxis da máxima o preço da liberdade é a eterna vigilância.


E há a infinita criatividade americana em face de circunstâncias extremamente adversas.


Frustrada na tentativa humanitária de convencer a amarelos, marrons, negros, latinos e outras pessoas de cor, cuja tonalidade específica não me tenha ocorrido (ficam aqui, antecipadamente, minhas desculpas aos omitidos), a enfiarem anticoncepcionais nas respectivas mulheres, Washington, temendo que do jeito que os nativos iam procriando em breve os americanos médios não poderiam mais comer 50 quilos de carne de boi ao ano, Washington começou a resolver o problema de maneira pronta e cirúrgica. Um bom exemplo é o controle da natalidade na Indochina, menos 1 milhão de cambojanos de um total de 7 em 5 anos de jornadas, e milhões, ninguém sabe ao certo quantos, de outra variedade de amarelos, os chamados vietnamitas. Ingredientes: TNT, herbicidas, pesticidas e napalm. Há ainda incontáveis mutilados, esfomeados e envenenados na região que se continuam vivos, por assim dizer, dificilmente poderão procriar, aumentando o excesso populacional. E demonstrando que não há hard feelings, nenhuma animosidade do povo americano na sua missão civilizadora. Washington, em bom tempo, importou alguns milhares de órfãos, tornados tais pelos ingredientes acima referidos, como souvenirs. Em breve, nas escolas públicas locais, serão apedrejados pelas mamães e papais das crianças brancas, mas com a experiência que adquiriram em escapar de bombas no Vietnam, o que é um paralelepípedo a mais ou a menos, sem falar do fato incontestável que estarão vivendo em muito melhores condições, pois, sob a chuva de pedras, terão o conforto de ler editoriais liberalíssimos no “New York Times” em defesa dos seus direitos de estudar, intitulados invariavelmente Irracionalismo em... segue-se o nome da cidade, já tendo sido sugerido que o “Times”, aderindo à nossa era eminentemente visual, coloque ao lado da palavra Irracionalismo o mapa completo dos EUA.


Washington é pragmática. O que é bom para o Vietnã nem sempre funciona em toda parte. Assim é que houve enorme alegria em Washington, traduzida na frase do então Presidente Lyndon Johnson, “uma grande vitória do mundo livre” quando o governo marrom da Indonésia, em 1965, eliminou 1 milhão de marrons da lista dos aspirantes à comida, revelando uma iniciativa insuspeitada da parte de marrons, principalmente porque os marrons “dispensados” pertenciam às hostes do principal inimigo da humanidade e preocupação suprema de Washington, a “conspiração comunista internacional”, ora, sem sede fixa (já se baseou em Moscou, Pequim, Praga e em Havana), pois demônios contam entre as artes que dominam a capacidade de desaparecer temporariamente da nossa vista. Mas estão sempre conosco. Eles se infiltram, eles se mascaram.


Há também a alternativa aplicada nos marrons da índia. Essa, sutil e rotineira. A fim de produzir uma agricultura de subsistência, já que dão à luz com maior assiduidade que o gado que adoram, uma bárbara e pitoresca religião, imaginem só um deus que faz “mu”, os marrons lá precisam de um dos produtos do gênio americano, os fertilizantes. Sempre disposta a auxiliar os menos favorecidos (vide parágrafo acima sobre os órfãos vietnamitas), Washington despachou para lá a Standard Oil da Califórnia (ou será de Indiana? Não tem importância, mudam os nomes apenas. “Uma rosa se chamada por outro nome”, como diz o mais famoso poeta daquela deliciosa ilhota que os EUA administram, a Inglaterra, permitindo generosamente aos ilhéus a ilusão de que se autogovernam), de propriedade do filantropo Nelson Rockefeller, da fundação do mesmo nome. A líder marrom local achou os preços dos fertilizantes um tanto caros. Considerando que o freguês tem sempre razão, a Standard Oil não insistiu. Washington, porém, acredita que às vezes um pouco de energia é necessária no trato dos nativos, para o bem deles próprios, e suspendeu créditos (empréstimos, não doações. A caridade é um estímulo à preguiça) até que a líder marrom aceitasse os preços da Standard Oil. Isso feito, os créditos e os fertilizantes foram prontamente fornecidos. Tudo OK. O Calcutá!


Washington sente-se profundamente incompreendida pelos que beneficia e protege. Um exemplo é o Chile. O país, em plena liberdade, coisa a que os latinos não estão habituados, admitindo eles próprios que quem nunca comeu melado quando come se lambuza começou a adotar as sinistras práticas ditadas pela “conspiração comunista internacional”., encampando diversas empresas dos EUA, o que, evidentemente, provocou o caos na economia chilena. No afã de ensinar uma lição proveitosa aos latinos, Washington usou a influência que tem no chamado Banco Mundial e outras chamadas instituições internacionais de crédito, cortando completamente empréstimos ao governo responsável pelo crime contra a economia chilena, e, apertando o parafuso, enviou en masse funcionários da maior agência filantrópica dos EUA, a CIA, a Havana, digo, a Santiago, os nomes latinos são fáceis de confundir, e esses abnegados distribuíram 13 milhões de dólares suados dos contribuintes americanos às forças democráticas locais, não lhes cobrando recibo ou imposto de renda, como é típico de Washington, porque a generosidade em alguns casos rende mais proventos a longo prazo do que rigores fiscais. A conseqüência disso foi a emergência do governo Pinochet, que rapidamente eliminou todos os focos de subversão, restabelecendo a democracia, que será implantada com todos os formalismos de praxe (formal trappings) nos próximos 40 ou 50 anos, a julgar pelo predecessor e êmulo de Pinochet, o generalíssimo Franco da Espanha que, há 37 anos, apesar de ele próprio já estar queimando óleo 70, aos 81 anos de idade, impede que o povo espanhol, irresponsavelmente, seja seduzido pelas blandícias da “conspiração comunista internacional”.


Acredito que os exemplos supracitados sejam suficientes para demonstrar os êxitos da política externa dos EUA e o espírito que a anima. Eu poderia citar outros, mas me contenho porque penso no preço do papel, que o Brasil importa a dólares, e não quero pesar sobre o PASQUIM, que colabora com as nossas importações, aceitando a desvalorização mensal do cruzeiro em face do dólar, o que estimula as exportações americanas para nossa pátria e, garantindo dest'arte a riqueza dos EUA, de tabela damos nossa modesta contribuição à segurança e integridade do Mundo Livre.