28 de mar. de 2008

Meia Idade

Sempre que me dizem que a idade traz sabedoria, tenho a impressão de ter perdido algum seminário... até aqui, pelo menos, continuo esperando alguém me ligar no meio da noite pra dizer onde é que os não-iniciados têm que ir. E parece que não sou só eu: olha uma frase do William Feather : "o que tira toda a graça da meia idade é ter quer servir de exemplo para as crianças". Os franceses são muito melhores no cinismo: ah si la jeunesse savait, ou si la vieillesse pourrait: ah, se a juventude soubesse ou se a velhice pudesse... Talvez venha daí essa lenda: a partir dos 35, 40, a curva de oferta aproxima-se da demanda num ponto ótimo, desde que todo mundo mantenha as expectativas baixas!

23 de mar. de 2008

Mencken

O LUGAR DO HOMEM NA NATUREZA

Como já disse, a teoria antropomórfica do mundo re­velou-se absurda diante da moderna biologia - o que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria será aban­donada pela grande maioria dos homens. Ao contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adotada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que o homem era um quase-Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres eram inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da "inspi­ração" e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível, e que sua contínua exis­tência no mundo deve ser facilitada e assegurada. Mas esta idéia é obviamente uma estupidez. No que se refere aos ani­mais, mesmo num espaço tão limitado como o nosso mundo, o homem é tosco e ridículo. Poucos bichos são tão estúpidos ou covardes quanto o homem.
O mais vira-lata dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente mais corajoso, para não dizer mais honesto e confiável. As formigas e abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas; tocam para a frente seus sistemas de governo com muito menos arranca-rabos, desperdícios e imbecilidades. O leão é mais bonito, digno e majestoso. O antílope é infinitamente mais rápido e gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo, mesmo suado do trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com seus filhotes e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em coragem, talvez a mais “nobre" de todas as qualidade­s. Seu pavor mortal não se limita a todos os animais do seu próprio peso ou mesmo da metade do seu peso - exceto os poucos que ele degradou por cruzamentos artificiais - seu pavor mortal é também daqueles da sua própria espécie - não apenas de seus punhos e pés, mas até de suas ri­sotas.
Nenhum outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se for deixada sozinha por aí durante dias, infalivelmente morrerá, e essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois, continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro animal, tanto em seu estado selvagem quanto abrigado pela civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças, e com mais freqüência. Cansa-se ou fere-se com mais facilidade. Finalmente, morre de forma horrível e geralmente mais cedo. Pratica­mente todos os outros vertebrados superiores, pelo menos em seu ambiente selvagem, vivem e retêm suas faculdades por muito mais tempo. Mesmo os macacos antropóides estão bem à frente de seus primos humanos. Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma família de setenta ou oitenta filhos, e continua tão vigoroso e sadio aos oitenta quanto um europeu de 45 anos.
Todos os erros e incompetências do Criador chegaram ao clímax no homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos; comparados com ele, até um salmão ou um estafilococo são máquinas sólidas e eficientes. O homem transporta os piores rins conhecidos da zoologia comparada, os piores pulmões e o pior coração. Seus olhos, consi­derando-se o trabalho que são obrigados a desempenhar, são menos eficientes do que o olho de uma minhoca; o Criador de tal aparato ótico, capaz de fabricar um instrumento tão cambeta, deveria ser surrado por seus fregueses. Ao contrário de todos os animais, terrestres, celestes ou marinhos, o homem é ­incapaz, por natureza, de deixar o mundo em que habita (nota: o artigo é de 1919). Precisa vestir-se, proteger-se e armar-se para sobreviver. Está eternamente na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco, um cachorro sem pêlos ou um peixe sem barbatanas. Sem sua pesada e desajeitada cara­paça, torna-se indefeso até contra as moscas. E Deus não lhe concedeu nem um rabo para espantá-las.
Vou chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do homem: ele tem alma. É isto que o separa de todos os outros animais e o torna, de certa maneira, senhor deles. A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a res­peito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente de Deus e, principalmente, torná-lo parecido com Deus. Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevi­tável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra. E, se presumirmos que o homem, depois de todos esses anos, não se parece com Deus, então fica claro imedia­tamente que a alma é uma máquina tão ineficiente quanto o fígado ou as amígdalas, e que o homem poderia passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa muito bem sem alma.
Pois é este o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é o de que ela infla o homem com vaidades antropomór­ficas e antropocêntricas - em suma, com superstições arro­gantes e presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só por­que tem alma - e subestima o fato de que ela não funciona. Assim, ele é o supremo palhaço da criação, o reductio ad absurdum da natureza animada. Não passa de uma vaca que acredita dar um pulo à Lua e organiza toda a sua vida sobre esta teoria. É como um sapo que se gaba de combater contra leões, voar sobre o Matterhorn ou atravessar o Helesponto. No entanto, é esta pobre besta que somos obrigados a venerar como uma pedra preciosa na testa do cosmos. É o verme que somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com todos os seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e decentes - seus soberbos leões, seus ágeis e galantes leopardos, seus imperiais elefantes, seus fiéis cães, seus corajosos ratos. O homem é o inseto a que nos imploram, depois de infinitos problemas, trabalho e despesas, a reproduzir.
- 1919

15 de mar. de 2008

Pecados

Como diria o pecador renitente e impenitente, dos males o melhor... e a Igreja do I Maiúsculo lançou sete novos pecados - todos sem graça. Eu conheço um tanto muiiiito melhores. A falta de graça anda aumentando. E Torquemada 2º reafirmou a existência de um inferno físico e real - é a segunda parte de uma vingança contra a linhagem dos livre-pensadores: ele já havia extinguido o limbo, lançando Sócrates & cia nas chamas do inferno. E, por Tutatis, parar por aqui antes que, como querem os anglicanos, o céu caia sobre minha cabeça. Abaixo, anjos que adoro: Asas do Desejo, as cenas iniciais, o poema-salmo e os anjos guardiães de uma humanidade partida e caída.

9 de mar. de 2008

Pulos

Bom, do e. e. cummings, por vias tortas, fui parar em Bloom, depois Shakespeare: divagações. Bão também. Aí vem esse filme-documentário do Al Pacino, onde ele tenta entender a influência de Shakespeare e fazê-lo inteligível, a partir de uma peça difícil, que é Richard III. A opinião das ruas, dos scholars (hilários em sua pompa vazia, mas às vezes esclarecedores), e a atuação do Pacino, sua óbvia paixão pela peça... tocante, até. Outro dia ele recebeu uma homenagem no American Film Institut, e foi realmente emocionante ver como um outsider como ele se tornou uma lenda do cinema, preservando ainda a humanidade - putz, rasgação de seda... mas gosto muito dele. Ele fala da peça (e é um grande entendedor) evidenciando as dificuldades, tanto da contextualização histórica quanto da linguagem, que perdeu sua modernidade (e Shakespeare fazia teatro popular em sua época! Inovador, mas popular) e se transformou numa catedral de palavras lindas e sem sentido para nós. Daí, tira esse sentimento de respeito excessivo, de "obra inatingível", etc. Um trabalho que devia ser feito para toda obra, não só Shakespeare: quem lê Dante hoje? Ou mesmo os russos? Com clareza, entendimento, embasamento histórico, contextualização? Estamos lendo e vendo os clássicos como maneirismos literários, tratando-os como "arte pela arte", exemplares raros que valem pela raridade, pelo exotismo, pelo que já foi dito deles... não é necessário nem mesmo lê-los; no máximo os estudos críticos. Perdeu-se a ligação entre a construção civilizatória que eles representaram, criaram e aprimoraram e os signos atuais - somos os novos papuas da cultura, ignorantes da pedra lascada invocando tecnologias presentes e gigantes passados. E não há culpados a não ser a falta de gente para fazer como o Pacino com esse Shakespeare, ou o Pound com os provençais, ou Rónai, Rosenfeld, Carpeaux, irmãos Campos... há cada vez menos dos velhos cães de guerra em campo. Pena.



4 de mar. de 2008

cummings

Vou colocar muito mais coisa dele, mas pra começo uma definição:

At least my theory of technique, if I have one, is very far from original; nor is it complicated. I can express it in fifteen words, by quoting The Eternal Question And Immortal Answer of burlesk, viz. "Would you hit a woman with a child? - No, I' d hit her with a brick." Like the burlesk comedian, I am abnormally fond of that precision which creates movement.

Minha teoria da técnica, se tenho alguma, está muita longe de ser original; nem é uma teoria complicada. Posso exprimi-la em quinze palavras, citando A Eterna Pergunta E Imortal Resposta do teatro burlesco, i. é: "Você bateria em uma mulher com uma criança? - Não, eu lhe bateria com um tijolo”. Como o comediante burlesco, sou extraordinariamente apegado àquela precisão que cria o movimento.